Livro: Um Motoqueiro Existencialista
Fábio Magnani
[publicado originalmente janeiro de 2017]
Escute garota, o vento canta uma canção. Dessas que a gente nunca canta sem razão. Me diga, garota, será a estrada uma prisão? Eu acho que sim, você finge que não.
Há muitas fábulas que se passam na estrada, estórias que falam sobre o vagar sem destino, encontros tramados pela contingência, amor e violência, riso e esquecimento. Em geral são sagas solitárias com viagens longas em estradas quase vazias. Só que a solidão não está apenas nos lugares vazios. A solidão também está na multidão. Principalmente na multidão.
Eu gosto muito de dois contos fantásticos que têm exatamente esse tema da solidão na multidão. Gosto porque, ao contrário das estórias comuns que se passam em estradas desertas, estes contos acontecem bem no meio de vias entupidas de carros.
No primeiro conto, Franklin reflete sobre o seu mundo distópico exageradamente consumista enquanto vai e volta para o trabalho todos os dias, dia após dia. No segundo conto, o engenheiro do Peugeot 404 vive toda uma vida – foram dias, semanas, ou terão sido meses? – em um engarrafamento colossal e inexplicável na volta para Paris.
Um conto é de 1963, o outro de 1966. Subliminal Man (O Homem Subliminar) foi escrito por J. G. Ballard, La Autopista del Sur (A Auto-Estrada do Sul) por Julio Cortázar. Comprei os dois livros na ordem inversa em que foram publicados.
A Auto-Estrada do Sul, em português, li em 1996, um pouco depois de terminar o doutorado. Naquele tempo eu tinha começado a ler muito, como é comum a qualquer pessoa que precisa fazer alguma coisa importante, difícil e cansativa. A gente fica com uma puta vontade de fazer qualquer coisa, lavar roupa, capinar o jardim, ler uma enciclopédia, tudo menos o tal trabalho importante.
Subliminal Man, em inglês, li em 2009, uma época em que me interessei mais fortemente pela ficção científica. Na mesma tacada comprei três livros de contos de autores que gosto muito. Philip K. Dick (1928-82), famoso por ter escrito os textos que deram origem ao Blade Runner, Minority Report, Total Recall e vários outros. Ray Bradbury (1920-2012), de Fahrenheit 451 e Martian Chronicles. E o próprio J. G. Ballard (1920-2009), mais conhecido pelo convencional The Empire of the Sun e também pelo quase pornográfico Crash, que mistura sexo com colisões intencionais de carro, mas sobre esse livro falo outro dia.
Enquanto os dois primeiros autores de ficção científica (Philip K. Dick e Ray Bradbury) foram mais inventivos para criar aventuras e roteiros interessantes, J. G. Ballard criava mais dramas e literatura de peso. Parece que o seu principal tema não era somente criar novas realidades ou fazer críticas sociais à tecnologia, como os outros fizeram, mas principalmente desvendar o estranhamento dos indivíduos submetidos à modernidade. Poderíamos dizer, em uma análise bem grosseira, que Philip K. Dick e Ray Bradbury tiveram uma visão mais política e sociológica da tecnologia, enquanto J. G. Ballard usou uma visão mais artística, antropológica, psicológica e filosófica.
Eu não conheço muita coisa do Julio Cortázar além desse livro Todos os Fogos o Fogo que contém o tal conto automobilístico A Auto-Estrada do Sul, e o livro Rayuela (O Jogo da Amarelinha) que comprei há uns três anos atrás quando encontrei a sua capa jogada em cima da cama de uma garota de pernas bonitas em uma animação em que um apaixonado ciclista passava os dias a procurá-la pelas ruas da cidade. Mas não tem problema que eu não conheça tanto o Julio Cortázar. A leitura do conto A Auto-Estrada do Sul lá no distante 1996 foi tão marcante para mim que ele se transformou em um dos meus escritores preferidos. Eu nem precisaria ter lido mais dele para tanto. Não se trata de quantidade.
Interessante que, ao comparar o ex libris dos meus dois livros, dá para ver claramente como eu mudei o jeito de escrever e também as informações que eu julgava importantes de serem registradas. Não é nada, não é nada, não é nada mesmo.
A estória do Subliminal Man se passa em um mundo com avenidas imensas, onde todos trabalham o tempo todo para poder comprar carros, TVs, geladeiras, festas, visitas, amigos, pneus, gasolina, cigarro, bebida e chocolate. Para que a economia funcione, todos têm que consumir muito. As TVs são trocadas a cada seis meses, os carros a cada três. Os bons consumidores são bem vistos pela sociedade, pois colaboram para o coletivo, criando empregos e descontos. Já os que consomem pouco são tidos como egoístas. O conto começa quando o governo decide instalar clandestinamente imensas torres emissoras de mensagens subliminares, o que aumentará muito o consumo para o bem geral da sociedade. Franklin é um médico bem imerso no consumismo, mas que ainda consegue fazer algumas reflexões, principalmente com as provocações do ‘maluco’ Hathaway, um hippie fracassado com mania de perseguição e cheio de teorias de conspiração.
A Auto-Estrada do Sul é a estória de um grande engarrafamento na chegada de Paris. No início as pessoas pensam que será uma questão de horas até voltarem a se mover. Mas passam-se os dias, as semanas, as estações e nada. Passam por estágios de esperança, de desconfiança, de boatos, de organização para irem em busca de água e comida, de conflitos entre vários grupos, de expedições e suicídios, de tráfico, de calor e depois de neve. Mas também há romance, religião, crianças brincando e encontros sociais.
Subliminal Man termina com a execução em via pública de Hathaway, quando este tentava invadir uma daquelas torres imensas de mensagens subliminares. Franklin depois disso se livra de todas as dúvidas contra as ações do governo e se dissolve no consumismo, sem pensar.
A Auto-Estrada do Sul termina com o tráfego andando novamente, com a destruição de todas as relações afetivas que haviam sido construídas durante o engarrafamento. O engenheiro do Peugeot 404 finalmente se conforma com a perda da sua amada, a garota do Dauphine. Ele agora olha apenas para frente, sempre em movimento, sem pensar.
Os dois contos são muito usados como exemplos de críticas ao uso exagerado dos automóveis e ao consumismo exacerbado. Eu acho esse uso que fazem dos contos algo limitado e distorcido. Isso porque, em geral, as pessoas usam esses contos para uma propaganda política bem rasteira e simplória, uma propaganda que é apenas travestida de análise sociológica, sem qualquer reflexão crítica, sem pensar.
Para quem quer pensar, um livro muito legal da sociologia da mobilidade é Mobilities, do John Urry. Sim, ele faz críticas ferrenhas ao consumismo e aos automóveis, mas também critica outras formas de mobilidade, como o turismo, a telefonia móvel, e até o transporte público. Em geral, quem apenas critica a tal ‘ideologia carrocrata’ não consegue ver essas outras forças ideológicas que também nos controlam. John Urry consegue.
Curioso que, mesmo em 1963, Subliminal Man já fala da ‘comunicação gratuita’ interrompida por propagandas comerciais, e dos sindicatos que apoiam o consumismo para que assim todos tenham emprego nas fábricas. A Auto-Estrada do Sul faz uma antecipação um pouco diferente, ao retratar todos os personagens como proprietários deste ou daquele veículo. Nenhum tem um nome, todos são vistos pelos outros apenas a partir do carro que possuem.
Esses contos, Subliminal Man e A Auto-Estrada do Sul, fazem críticas sociais e econômicas, sim, mas vão muito além. Primeiro porque nos lembram que, por bem ou por mal, temos que viver em sociedade para conseguir comida, água, carinho e reconhecimento. Não é fácil simplesmente jogar fora os problemas sociais sem com isso jogar fora também os benefícios de viver em coletividade. Segundo porque esses dois contos não se limitam a uma visão sociológica, pois lidam principalmente com as angústias, com os valores e com as decisões dos indivíduos.
Franklin vivia sozinho em seu automóvel, sim, mas esse era o lugar em que ele mais gostava de estar para se livrar da sociedade consumista. De certa forma, a amizade com Hathaway lhe deu algum sentido existencial. Depois, com a execução do amigo, Franklin se voltou ao conforto da vida consumista com a esposa Judith. Não foi nada heroico fugir dessa maneira. Talvez fosse melhor morrer sozinho como Hathaway, mas penso que assim Franklin representou melhor a nossa submissão humana às forças que nos controlam, seja a economia capitalista ou a ideologia socialista, sejam as leis da natureza, a nossa linguagem, as limitações dos nossos sentidos e também as limitações da nossa própria mente.
O engenheiro do Peugeot 404 ficava extremamente incomodado com as fofocas no engarrafamento, com a sovinice de quem guardava água somente para si, com a violência dos outros grupos, e com o egoísmo dos traficantes de comida. Só que, mesmo dentro desse mundo cão, conseguia valorizar o carinho da garota do Dauphine, a liderança do homem do Taunus, o companheirismo dos velhos do Citroën, a leveza das freirinhas do 2HP, e o pragmatismo dos camponeses do Ariane.
Esses dois contos usaram a estrada para mostrar a condição humana. Para mostrar como nos sentimos solitários, como somos controlados por forças muito maiores que a gente, como é a nossa luta pelas mudanças, como temos visões e reações diferentes cada um de nós, como encontramos conforto na amizade, no romance e no trabalho social, e como encontramos a razão para viver na reflexão filosófica honesta sobre essa nossa tal condição.
A solidão humana é inevitável. Nós nada mais somos que conjuntos de átomos flutuando no universo, átomos que formam uma mente que nada mais faz do que criar realidades ilusórias a partir de sinais elétricos vindos dos nossos órgãos sensoriais. De alguma forma, no entanto, conseguimos criar ilusões coletivas que nos dão certo conforto, e maravilhosamente conseguimos criar ilusões artísticas que nos permitem imaginar como é essa tal ‘realidade de verdade’ que estamos condenados a jamais ver e compreender em sua totalidade.
Esses dois contos, que singelamente usam carros e estradas como metáforas, tratam na verdade dessas questões universais. Da solidão humana, das ideologias autoritárias, do conforto comunitário, do nosso fantástico poder de contemplação filosófica, da criação artística, dos fluxos sociais e naturais nos quais flutuamos, da magia do romance, dos encontros casuais, e da individualidade.
É isso. Se você pretende saber quem eu sou, eu posso lhe dizer. Entre no meu carro na Estrada de Santos e você vai me conhecer. Você vai pensar que eu não gosto nem mesmo de mim, e que na minha idade só a velocidade anda junto a mim. Eu prefiro as curvas da Estrada de Santos, onde eu tento esquecer um amor que eu tive e vi pelo espelho na distância se perder. Mas se o amor que eu perdi eu novamente encontrar, as curvas se acabam e na Estrada de Santos eu não vou mais passar. Não vou mais passar. As curvas se acabam, e na Estrada de Santos eu não vou mais passar.