Voando em Duas Rodas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

VOANDO EM DUAS RODAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2017]

Tenho uma jaqueta que parece de aviador, daquelas de couro marrom com a gola de pele de carneiro. Essa é a minha jaqueta mais antiga, e eu quase não uso para andar de moto porque não é muito apropriada. Eu gosto de guardá-la para sonhar com outros tipos de viagem. Na verdade, dificilmente posso usar qualquer uma das minhas várias jaquetas aqui no Recife, que é um lugar quente.

Essa questão de jaquetas é um pouco polêmica. Muitas pessoas defendem que a gente tem que usar jaqueta o tempo todo. É claro que se você cair é bom estar fofinho, de jaqueta, com luva, com todos os equipamentos de segurança, porque claro que eles vão diminuir os seus machucados. O problema é: será que a jaqueta não causa esses acidentes? Principalmente em um lugar quente como o Recife, será que você ficar o tempo todo com uma roupa muito pesada e quente não causa mais cansaço, não diminui a sua concentração? Por isso é algo muito relativo se vale a pena usar tantos equipamentos de segurança assim. É claro que o ideal seria ter equipamentos que não prejudicassem o movimento e que não fossem tão quentes, só que a gente não tem essa sorte. Esses equipamentos normalmente vem de países mais frios e a gente só copia, como quase sempre. Bem, mas essa é outra questão.

Eu lembrei da minha jaqueta de aviador porque queria falar sobre alguns livros que são importantes para mim. Deixa eu explicar primeiro o que isso tem a ver com motos, porque aparentemente aviões e motos não tem nada a ver. Tem alguns autores que tentam explicar, para quem não anda de moto, o que se sente ao pilotar uma. E o exemplo que eles dão é muito interessante. Imagina quando você era criança e estava lá no balanço do parquinho junto com seus amigos. O balanço vai e vem, e vai mais alto e vem, e vai mais alto ainda e vem. Até que chega um momento em que você consegue chegar o mais alto que você pode. Naquele momento o balanço para lá em cima, e naquele instante de equilíbrio até parece que você pode sair dali voando. Naquele momento a inércia se transforma completamente em energia potencial gravitacional. É mais ou menos isso que se sente quando se pilota uma moto, principalmente quando você faz uma curva e a inércia te jogando para fora se equilibra com a gravidade de puxando para dentro, ou então quando você acelera. Parece que você vai vai sair voando. Esse é um sonho muito antigo da humanidade. Talvez a moto seja um substituto para isso.

Gosto muito de três autores que escrevem sobre aviação. Cheguei ao primeiro deles quando era adolescente. Naquela época não existia e.mail, internet, então conversávamos por carta com os amigos que moravam em outras cidades. Eu tinha uma amiga que gostava de colocar citações de livros no meio das suas cartas. Em uma delas, ela falou sobre um de um autor que, para ela, pensava muito como eu. O livro da citação era A História de Fernão Capelo Gaivota do Richard Bach. Era um livro bem na moda nos anos 80. Li e adorei. É uma estória aparentemente infantil, sobre uma gaivota que não se contenta em voar só para conseguir comida. Ela queria voar para fazer acrobacias, para ir mais rápido, para dar mergulhos na velocidade do som. Não para se mostrar ou para ter prestígio, mas simplesmente porque queria fazer aquilo. Ela se sentia bem e realizada fazendo manobras cada vez melhor. Mesmo parecendo uma bobagem, voar cada vez melhor era o instrumento daquela gaivota para progredir espiritualmente.

Depois eu li vários livros do Richard Bach. Um monte. Entre eles o Ilusões, que também é bastante espiritualizado. Gostei também de um outro livro mais romântico, A Ponte para o Sempre, em que ele conta o encontro com sua alma gêmea, a mulher que ele nasceu para amar, para viver a vida toda. No final eles não conseguiram viver como queriam, mas foi um grande amor. Na cabeça dele isso vai ser para sempre.

Sobre a espiritualidade nesses livros, acho que não é algo muito fácil de falar. É mais uma inspiração que você sente ao ler. Tenho uma grande dificuldade em aceitar mitologias, como divindades que teriam andado pela Terra, o papel do destino e a vida após a morte. Mas acho bem interessante essas estórias enquanto fábulas, como formas artísticas de compreendermos a vida, o universo e todas as coisas. Por isso tento filtrar as coisas supernaturais que não acredito no Richard Bach e aproveitar só o que posso aceitar. Certamente, ao ouvir as impressões dele durante os vôos, o que pensava, o que sentia, você vai, de alguma forma que eu não compreendo, descobrindo como se tornar quem realmente você é. O que me faz lembrar do livro do Alan Watts, Become What You Are (Torne-se o Que Você É), que foi publicado postumamente em 1995, mas com manuscritos que os editores imaginam terem sido escritos a partir de 1953. Isso por causa da máquina de datilografar que ele usou e porque os conceitos são parecidos com as transmissões radiofônicas que ele fazia na época. O Alan Watts foi um filósofo bastante conhecido por popularizar o zen-budismo no Ocidente. Pelo o que eu saiba ele não tem nada a ver com aviação, mas de certa forma suas palavras tem muito a ver com a dos outros três escritores de quem falo neste texto. E já que estou falando de inspiração espiritual (no sentido filosófico, não no sentido religioso), gosto muito do livro Memórias, Sonhos e Reflexões, do Carl Jung, e What is Ancient Philosophy?, do Pierre Hadot. Juntam filosofia e psicologia, áreas que muitas vezes são vistas como antagônicas, objetividade e subjetividade.

Todo mundo tem o seu pop de estimação. Eu tenho vários. Na música os Engenheiros do Hawaii, nas motos a Vespa, nas bicicletas a Caloi 10 e na literatura o Richard Bach. De vez em quando, de tempos em tempos, começo a me sentir mentalmente cansado, sem muita certeza do que realmente quero. Daí vou lá no meu escritor pop preferido e tudo volta a fazer sentido. Não que eu acredite no que o Richard Bach escreve, mas de certa forma ele me faz lembrar de uma época em que eu confiava mais em mim. Engraçado isso, leio o Richard Bach para entrar em contato com o Fábio Magnani do passado, como uma ponte.

Em geral suas estórias são autobiográficas. Depois desses mais místicos, fiquei conhecendo outros livros em que ele falava sobre aviação – ele era piloto. Há um tempo atrás lançaram uma trilogia com três livros antigos dele sobre aviões, Flying, que tem Estranho ao Chão, Biplano e Nada Por Acaso. São vários tipos de aviação. No Estranho ao Chão ele conta uma viagem quando ainda era piloto militar, a solitude e a felicidade, a plenitude e a certeza, que se sente quando se está sozinho, principalmente em uma viagem à noite. Ele comenta que é engraçado como os pilotos no chão tem um ar tranquilo mas sempre solitário, sem muita expressão facial, ninguém o vê sorrindo muito frequentemente. Isso porque eles só sorriem de verdade quando estão acelerando, quando estão voando sozinhos. Esse é o momento de plenitude deles, de realização. De certa forma isso acontece com os motoqueiros, a gente sorri sim, vive grandes emoções e tem grandes experiências quando está debaixo do capacete, muito embora os outros nunca possam ver isso. No Biplano ele conta uma viagem da Costa Leste à Costa Oeste dos EUA. Vai parando nas fazendas e cidadezinhas, sem muito planejamento. Não sei se hoje em dia isso seria possível. Acredito que deve ser bem complicado voar livremente para qualquer lugar, sem instrumentos, pousando em qualquer clareira que pareça convidativa. Esses livros são da década de 60 – um outro tempo. No Nada Por Acaso, ele e alguns amigos rodaram os EUA com um tipo de circo aéreo que parava nas cidades pequenas para vender passeios de avião para que as pessoas pudessem ver suas casas e suas vidas de um outro ponto de vista.

Interessante que há outros dois escritores famosos que também eram aviadores, que também escreviam de forma bastante espiritualizada e que também usavam imagens infantis para passar a sua mensagem. Um deles é Antoine de Saint-Exupéry, que escreveu o livro de aviação Wind, Sand and Stars. Mais conhecido por ter escrito O Pequeno Príncipe, ele também era piloto de avião. Morreu durante um voo, desaparecendo após uma queda no Mediterrâneo durante a segunda guerra mundial. Antes disso era piloto comercial. Neste livro conta sobre as alegrias e o que há de bom das viagens que fazia por esse mundão. O terceiro livro sobre aviões é Over to You do Roald Dahl, famoso por ter escrito livros para crianças, entre eles A Fantástica Fábrica de Chocolate. Também foi piloto durante a segunda guerra mundial. Esse é um livro um pouco diferente, pois fala do medo e das tragédias durante a guerra. Os pilotos não sabiam se voltariam, se veriam seus amigos mais uma vez.

Esses são vários livros que trazem diferentes visões sobre a aviação: por lazer e por turismo, militar e comercial, rápida e sem pressa, romântica e trágica, essencial.

Eu nunca pilotei um avião, mas de certa forma vivo esses sentimentos e emoções ao viajar de moto. Por exemplo, quando eu fui para o Atacama em 2010 queria muito conhecer o deserto, saber como é ficar em um lugar que só tem o céu e a areia, onde você precisa conviver com você mesmo. Você tem que se aturar. Embora tenha viajado com dois companheiros, dentro do seu capacete você está ali com você mesmo. Nesse momento, nessa viagem, nessa preparação, sempre imaginava esses autores que eu gostava, esses autores que também contavam sobre viagens solitárias debaixo do capacete. De certa forma as viagens de avião desses escritores são bem parecidas com as de moto, e talvez por isso me chamem tanto a atenção. Claro que deve ser bem mais legal voar do que ficar preso ao chão.

Os livros de aviação que falei são um pouco diferentes dos muitos livros que eu tenho sobre viagens de moto. Os de moto em geral falam sobre os pequenos acidentes e sobre os encontros. O interessante é que de avião você não pode ter pequenos acidentes nem encontrar pessoas. Então esses aviadores falam mais da solidão. Solidão não. Solitude. Nas duas você está sozinho. Só que na solidão você está triste por isso. Já na solitude você quer ficar sozinho, conviver com você mesmo, ouvir o som do vento, conhecer as estradas, ver as montanhas e as dunas quilométricas. É como um monge que vive sozinho porque assim o quer. Eu penso que esses autores falam muito bem sobre a solitude, como eles se sentem bem quando estão em um avião, quando estão viajando. Acho que é essa sensação de solitude e de plenitude e também de boas lembranças que eu busco quando ando de moto, de bicicleta ou leio um livro. É um estado que alguns psicólogos chamam de flow, de fluxo. É você se soltar e viver muito o momento, se esquecendo de você mesmo e se transformando em uma pessoa mais rica.

Uma curiosidade desses livros de aviação (Estranho ao Chão, Biplano, Nada Por Acaso, Wind, Sand and Stars, e Over to You) é que são de autores que ficaram famosos por escreverem estórias infantis, ou aparentemente infantis, já que os adultos adoram (A História de Fernão Capelo Gaivota, O Pequeno Príncipe e A Fantástica Fábrica de Chocolate).

Pena que eu só posso usar a minha fantasia, não posso sair voando. Se bem que, de certa forma, quando comecei a pensar nesses livros eu voei para o passado viver com a minha amiga que me escreveu com carinho sobre um cara que pensava como eu. Que bom que ela escreveu. Eu espero ser fiel a esse tipo de pensamento e de valores, curtir a minha solitude e cultivar quem realmente é importante.

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