© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista
Fábio Magnani
[publicado originalmente em janeiro de 2017]
Em 1963, Peter S. Beagle e Phil Sigunick, amigos de rua desde a infância, agora com vinte e poucos anos, percorreram todos os Estados Unidos, de Nova Iorque a São Francisco, montados nas suas fiéis scooters: Jenny e Couchette. Naquela época ainda não havia o Vietnam, a geração do amor, e a luta pelos direitos humanos. Por isso, a chegada dos dois motoqueiros barbudos muitas vezes era tomada como agressiva nas pequenas cidades em que paravam para descansar. Nada que depois não fosse atenuado pela doçura dos dois, pelas músicas que tocavam, e pela empatia que tinham por todos que encontravam no caminho, fossem gerentes de hotel, mães felizes de crianças felizes, ou até uma prostituta ex-traficante de maconha que sabia de cor livros inteiros de poesia e que deixava seus quatro filhos aos cuidados do seu cafetão em uma colônia de artistas enquanto passava semanas fazendo programas em Los Angeles e Las Vegas.
Claro que esse não é o único livro desse tipo. Há um monte de estórias, fictícias ou não, sobre motocanças pelos EUA. Para citar alguns livros gosto de Across America by Motor-Cycle (C. K. Shepherd, 1923) e Zen and the Art of Motorcycle Maintenance’l (Robert M. Pirsig, 1974). Nos filmes, meus preferidos são Then Came Bronson (1969) e Easy Rider (1969). Tem também o livro On the Road (Jack Kerouac, 1957), que depois até virou filme (2012), mas esse só com andanças, sem motos.
O tal livro sobre a viagem de scooter dos dois novaiorquinos é um pouco diferente de todos os outros livros de moto que eu tenho, isso porque talvez seja o único livro desses que tenha sido escrito por um escritor profissional de verdade. Peter S. Beagle (1939) é conhecido pelo livro de fantasia The Last Unicorn (1968), sendo muitas vezes comparado a Lewis Carroll, J. R. R. Tolkien e C. S. Lewis.
Percebi agora que ainda não falei do título do motolivro. É I See By My Outfit (1965). A tradução seria algo como “Eu Vejo Pelos Meus Trajes”. Comprei em 2011, li agora nas festas de fim de ano.
A primeira coisa que me chamou a atenção foi o sumário, que vinha com todos os trajetos, mas sem nenhuma quilometragem ou data. Como assim? Não importa se é aventura, suspense ou romance, porque se é um engenheiro quem lê o livro, pode ter certeza que vai estar cheio de anotações sobre falhas lógicas, descontinuidades no roteiro, mapas, datas e distâncias. Eu não consigo nem começar a história principal sem antes ir à Wikipedia ler tudo sobre a vida do escritor e ao Google Maps para descobrir exatamente por onde os personagens passaram durante a estória. Sem contar todas as vezes que paro a leitura para ouvir uma música que comentam no livro, ou para ver um prédio famoso por onde passam. Não é fácil a vida de quem foi doutrinado pela engenharia. Também gosto de olhar para os detalhes da edição impressa, qual é a editora e quem fez a capa. Nesse caso era um livro novo, então não tinha o histórico que tanto gosto de livros que vieram de bibliotecas.
Peter era o escritor, Phil era o pintor. Então, durante a viagem, foram fazendo registros literários e pinturas sobre tudo que foram vendo. Foi uma viagem meio corrida, de três semanas e meia, mesmo assim paravam o tempo todo.
O tema principal do livro é a amizade entre os dois, que foi demonstrada de duas formas. Primeiro pelas conversas malucas de Peter e Phil. Eles inventavam personagens o tempo todo, como um general indo para a guerra dando conselhos aos seus comandados, como o Cavaleiro Solitário sendo enrolado pelo Tonto, ou o Calvin enrolando o Hobbes em mais uma aventura temerária. Eu achei muito engraçado porque é assim mesmo que falo com o Dante e com a Bela. Quem não nos conhece acha que estou dando uma bronca ou que estamos malucos.
A segunda forma em que a amizade dos dois foi expressa no livro foi pelas músicas que tocavam. Por exemplo, em Kansas City pararam em uma loja de violões usados, na eterna esperança de encontrarem o instrumento perfeito há longo tempo perdido. A turma da cidade logo viu as motos paradas, ficou animada com a aventura e pediu para que tocassem alguma coisa. A dupla de motoqueiros viajantes tocou músicas russas, francesas, americanas e judias.
Esse tipo de livro é muito legal porque você pode colocar a música para tocar na internet e pode até se sentir na roda dos amigos.
No final do livro, Peter S. Beagle conta que logo depois da viagem eles se separaram e ficaram mais de vinte anos sem conversar. Acabaram se encontrando novamente, meio envergonhados no começo, mas logo retomaram a música como faziam desde a infância. Tem um vídeo legal com os dois já velhos, cantando despretensiosamente como se estivessem conversando na sala da nossa casa.
Na página 89 finalmente aparece a referência ao título do livro: “We see by our outfits what we was both cowboys” (algo como “nós vemos pelos nossos trajes que nós somos ambos cowboys”). Pelo o que encontrei na internet, parece ser uma referência à música Streets of Laredo, em que um cowboy que está morrendo pede a outro cowboy como quer que seu enterro seja encomendado: como o caixão deve ser carregado, onde quer ser enterrado, como deve ser escrita a carta para sua mãe, e principalmente avisando que o nome de seu assassino nunca deve ser mencionado para que dessa forma seja para sempre esquecido.
A parte do título vem quando ele fala “I can see by your outfit that you are a cowboy / Come an’ sit down beside me an’ hear my sad story” (“Eu vejo pelo seu traje que você é um cowboy / Senta aqui do meu lado e ouça minha história triste”).
A parte que eu mais gosto dessa música é quando o cowboy moribundo descreve como a música deve ser tocada no cortejo: “Beat the drum slowly, play the fife lowly / Play the dead march as you carry me along” (“Bata o tambor devagar, toque a flauta bem baixinho / Toque a marcha da morte enquanto vocês me carregam”). Gosto principalmente quando quem canta essa parte é a voz cavernosa do Johnny Cash, muito embora nessa versão em especial ele não cante a parte que fala do “I see by your outfit”. Em uma outra versão ele canta a música inteira, mas sem a mesma gravidade na voz.
A vida do Johnny Cash é muito triste e bonita. Ontem à noite assisti mais uma vez ao filme Walk the Line (2005), que conta o tumultuado início da relação amorosa do Johnny Cash com a June Carter.
Falando em motos e Johnny Cash, depois que vi o filme é que me toquei da música Ghost Rider in the Sky, que toca no filme Ghost Rider.
Alguns dizem que Streets of Laredo é a música mais triste que existe. Já para outras pessoas a música mais triste do mundo – por causa da música mas também por causa das imagens que colocaram no videoclip – é Hurt. Ela foi gravada pelo então já velho Johnny Cash, a três meses da morte de sua amada June e a sete meses da sua própria morte.
O Johnny Cash tem uma voz tão forte que até You Are My Sunshine fica diferente com ele. É de arrepiar ouvir aquela voz enquanto você vê as fotos dele ao lado da sua amada mulher. É de arrepiar.
Enquanto lia o livro, acabei ouvindo outras músicas do Johnny Cash. Por exemplo, encontrei I’m so Lonesome I could Cry (Eu estou tão sozinho que podia chorar), que eu conhecia na voz dos Cowboys Junkies. Por falar neles, como estamos falando de músicas tristes, uma outra fortíssima concorrente é Mining for Gold. Eu ouvia muito essa banda Cowboy Junkies na minha juventude, lá pelo final dos anos 80 e começo dos 90.
É bem difícil falar exatamente sobre o livro I See By My Outfit, pois os personagens, cenas e texturas são tão bem feitos que não podem ser resumidos ou duplicados. Só lendo mesmo. Mas deixa então eu comentar só um desses infinitos detalhes.
Lá estava Peter rodando com a tal prostituta em sua garupa quando ela começa a cantar a música He’s Got the Whole World in His Hands, logo sendo acompanhada por ele. Só que a cantoria dos dois não encaixa, pois, segundo ela, ele canta sincopado. O casal descobre então que a causa disso era que, enquanto ela tinha aprendido a música ouvindo Marian Anderson, uma cantora lírica, ele tinha escutado Mahalia Jackson, uma cantora gospel.
E assim segue todo o livro, com tantas e tantas referências culturais e conversas instigantes, consertos mecânicos e dúvidas filosóficas, montanhas gigantes e desertos intermináveis, nos mais de 5000 quilometros rodados.
O livro termina quando chegam em São Francisco, e escolhem como grand finale assobiar a alegre Marinette de Georges Brassens.
Curioso que cada geração de leitores deve ter tido sentimentos diferentes ao ler este livro. Quem leu assim que ele foi lançado, em 1965, deve ter achado um livro feliz, pois deu tudo certo na viagem. Um pouco mais tarde, ao saberem da separação dos dois amigos, os leitores devem ter visto o livro como uma despedida da infância (é assim que Peter S. Beagle descreve o livro na edição que está agora em minhas mãos). Já hoje em dia, após o reencontro, podemos ler o livro como uma celebração aos eternos encontros e desencontros que temos nesta vida. Eu tive a sorte de ler assim.
Outra curiosidade é que o tom da leitura depende muito das músicas que você ouve enquanto lê. Eu, por exemplo, acabei seguindo o caminho do Johnny Cash e Cowboy Junkies, que são mais introspectivos. O livro, no entanto, cita um monte de outras músicas francesas, judias e americanas que são mais alegres. É como dizem… o leitor é quem faz a estória, não o escritor.
Para terminar, gostei de uma parte em que ele fala sobre a história ser verdadeira ou não.”If I wanted to write about you, I wouldn’t ask you, I´d just do it. Maybe you’d recognize yourself, maybe you wouldn’t. Phil paints the same way. We’re not photographers.” (“Se eu quisesse escrever sobre você, eu não iria te pedir, eu iria simplesmente escrever. Talvez você se reconhecesse, talvez não. Phil pinta do mesmo jeito. Nós não somos fotógrafos.”)
Por falar nisso, um detalhe interessante é que as scooters deles não eram as nossas conhecidas Vespas ou Lambrettas. Eram Heinkels Tourist, scooters de quatro tempos fabricadas na Alemanha. Conhecidas na Inglaterra como os Rolls-Royce das scooters, tinham na minha opinião um design horrível e nem um décimo da ligação que temos com as scooters italianas.
Eu resolvi esse problema imaginando Vespas rodando na estrada, uma ao lado da outra. Talvez fosse mais representativo ainda se eu imaginasse duas Hondas, que são mais comuns mas nossas ruas, mas não cabiam no meu sonho. Fique livre para imaginar.
Quando escrevemos sobre uma viagem, um livro, uma música, não conseguimos reproduzir exatamente o que aconteceu. A memória falha, a mente dá mais atenção a este ou aquele detalhe, o estilo floreia mais uma parte e demoniza mais a outra. O interessante é que isso não distorce a realidade. Ao contrário, é essa recriação artística que nos permite atingir a essência das pessoas e dos acontecimentos. Não me interesso muito se o nome da Jullie era realmente esse ou se foi mudado pelo Beagle, o que me interessa é que acabei o livro com um sentimento muito forte sobre o que é a vida, o acaso e as emoções. Não me importa se era uma Heinkel ou uma Honda, o importante é que o passeio foi feito. Isso é o que vale.