Viagens Tristes

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Um Motoqueiro Existencialista

VIAGENS TRISTES
Fábio Magnani
[publicado originalmente em dezembro de 2016]

É melhor ser alegre que ser triste, a alegria é a melhor coisa que existe, é assim como a luz do coração. Mas pra fazer uma viagem com beleza, é preciso um bocado de tristeza, é preciso um bocado de tristeza, se não não se faz viagem não. Bem… talvez não tenha sido exatamente isso que o poetinha tenha cantado, mas tá valendo. Como já é final de ano, Natal, Ano Novo, férias, e como não vou poder viajar, fui dar uma olhada aqui na minha biblioteca de livros de moto em busca de um alívio temporário. Peguei alguns dos livros que eu mais gosto para tirar uma foto: Jupiter’s Travels (Ted Simon, 1979), Ghost Rider (Neil Peart, 2002) e Breaking the Limit (Karen Larsen, 2004). Como sempre, não podendo fugir da minha mente treinada por anos para ser analítica, tentei descobrir o que tinham em comum. O que será que tinham em comum para eu gostar tanto? Dois eram escritos por homens, um por mulher. Um era antigo, dois mais modernos. Nem o trajeto era igual, nem a quilometragem. O que tinham em comum? Achei: a tristeza do viajante e do escritor. Isso mesmo, nos três livros, tanto a viagem quanto a escrita tinham um ar (um mar?) de tristeza. E olha que nem a causa da tristeza era a mesma. Uma das viagens nasceu de uma desesperança amorosa, outra de mortes na família, outra de um vazio existencial. O comum era a tristeza, na sua mais profunda essência.

A gente não escolhe a tristeza, só que podemos ter um certo cuidado com o que fazemos com ela. A gente pode tentar se vingar, como a viajante que estava triste por uma desilusão e que poderia ter se jogado nos braços de outra pessoa para tentar compensar. Ou como o viajante que perdeu a filha e a mulher e que poderia ter se jogado nas drogas para compensar. Ou como o viajante que perdeu a crença no mundo e que poderia ter virado um escritor cínico se alimentando do rancor que suas críticas destrutivas causavam a todo mundo.

Os três motoqueiros poderiam sim ter tentado o alívio na vingança. Mas sabiam que isso era impossível. Também podiam ter tentado criar racionalizações para explicar o que não podia ser explicado. Isso porque a causa da tristeza não dependia deles, era algo externo. Por que não eram mais amados? Por que as pessoas ficavam doentes e morriam? Por que o trabalho não mais trazia a plenitude? Eles não fizeram isso. Eles não se vingaram, eles não tentaram explicar o que não tinha explicação. Preferiam viajar de moto. Bom para a gente. Não que tenha sido algo saudável desde o início. No início acho que tentaram apenas escapar da dor. Sair de perto de quem não correspondia ao amor, sair de perto das lembranças de quem não estava mais vivo, sair de perto das politicagens que não faziam sentido. No começo foi escapismo puro. Só que depois aprenderam a curtir a tristeza. Isso mesmo, a tristeza precisa ser vivida. Enquanto você se vinga de você mesmo, ou enquanto você cria explicações para o inexplicável, ou enquanto você tenta escapar de algo que você carrega dentro de você, não há a possibilidade de liberdade. Só quando você percebe que está triste, só triste mesmo (só?), é que a cura começa. Não é culpa de ninguém, não pode ser explicada, não pode ser vingada.

Esses três motoqueiros dos livros fizeram isso. Não se vingaram. Não racionalizaram. Primeiro tentaram escapar, depois choraram, depois se curaram. E de moto! Quem diria, né? É nesse momento, do choro, da aceitação de que você está triste, que começa realmente a viagem. A viagem de verdade não é para escapar, não é para vingar. A viagem é para buscar novas oportunidades, conhecer gente nova, experimentar outras sensações, aprender a se conhecer. Acima de tudo, para aqueles motoqueiros dos livros tristes, viajar era simplesmente retornar à essência deles. Era fazer o que sabiam fazer. Andar de moto. Que simplório, né? Sim, a vida é simples.

A redenção está em encontrar a si mesmo. Talvez algum oráculo grego já tenha dito isso antes, mas não é por ser antigo que deixa de ser verdade. É melhor fazer uma viagem alegre do que triste, a alegria é a melhor coisa que existe. Mas para fazer uma viagem de verdade, é preciso um monte de tristeza. Que triste!

Se bem que, pensando um pouco melhor agora, talvez eu tenha me enganado. Não que a tristeza seja tão fundamental assim para uma viagem de verdade Acho que o legal, o que realmente gostamos, é quando o escritor viajante consegue juntar a sua viagem externa com uma viagem interna. E talvez, infelizmente, a alegria simplesmente não permita essa viagem interna. Talvez nós humanos tenhamos sido condenados a nos encontrar de verdade só quando estamos tristes. Seja uma tristeza pelo desamparo de outrem, uma tristeza pelas mazelas do universo como doenças e mortes, ou uma tristeza existencial, que vem de uma praga lançada quando nascemos, de termos a capacidade de perceber que as pessoas ao nosso lado podem até ser coloridas e falarem alto, conversarem de forma animada, fingirem alegria, mas que, no final, toda essa performance é como se fosse apenas mais um programa de televisão de domingo à tarde. Isso sim é que é triste.

Era isso. Ainda bem que temos Ted Simons, Neil Pearts e Karen Larsens para nos ensinarem que a tristeza não é um mal. Muito pelo contrário, a tristeza é apenas um sinal de que as coisas vão mal, de que não precisamos de vingança, que não precisamos de explicações, de que precisamos de mudança, que precisamos de redenção, que precisamos uma viagem. Uma viagem de moto, de preferência, e de cabeça, com certeza.

Ah… e felicidade não é alegria. Felicidade é um estado interno (pureza de coração), enquanto alegria é um comportamento externo (uma televisão ligada bem alto, só para dar a impressão). Foi a tristeza daqueles carinhas tristes dos livros de moto que os levou para o caminho da felicidade, da simplicidade, e da plenitude. Pelo menos espero que sim.

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