Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em novembro de 2010]
Depois de chegarmos em Arica-CH, a parte mais ao norte do Chile, começamos a parte turística oficial do passeio. Primeiro conheceríamos o Parque Nacional Lauca e depois desceríamos para San Pedro de Atacama. Esses são lugares muito conhecidos de todos, com guias, quiosques para vendas e todo o mais.
Pegamos uma van em Arica-CH para irmos até o Parque Nacional Lauca. O roteiro, de dia todo, inclui várias cidades antigas, o vulcão Parinacota e lago Chungará. A lagoa fica a 4.500 m de altitude. Desta vez não me cansei tanto. Não sei se foi pela experiência anterior da altitude, as cheiradas de Cocoroco, o chá ou ainda as folhas de coca. Experimentamos de tudo que tínhamos direito. Comemos até carne de Alpaca.
A descida de volta para Arica, vista pela janela da van, é tão íngreme que parece que se está descendo de avião. De moto você fica mais preocupado com a estrada e não tem essa impressão.
Ficamos um dia a mais descansando em Arica-CH, onde fomos conhecer o famoso Morro de Arica, local de uma das mais importantes batalhas na conquista do Atacama. Um lugar muito legal, onde se preserva e se constrói parte da identidade chilena. Lá os chilenos demonstram um grande orgulho militar que, como brasileiro, não consigo compreender. Parece ser algo bem anterior ao regime militar, sendo parte integrante da forma de pensar daquele povo. Mesmo sabendo que o militarismo é perigoso, o Morro de Arica é inspirador.
No dia da saída, logo pela manhã, o Geraldinho e o Wagner foram conhecer a missa chilena. Eu, como bom ateu, fiquei tomando conta das motos. Gosto de pensar que tenho um lugar reservado no primeiro círculo do inferno, destinado aos ateus bonzinhos, onde terei a companhia dos grandes filósofos gregos. Mas talvez seja impedido de ficar por lá porque fui batizado – contra a minha vontade, que fique bem claro!
De Arica-CH voltamos para o sul, rumo a San Pedro de Atacama-CH. A viagem demorou dois dias. No primeiro, até Iquique-CH, a estrada foi a mesma que usamos na ida, mas desta vez não passamos em Pisagua. Só o Wagner precisou de combustível extra. A descida para Iquique-CH continuava linda. Trocamos o óleo, filtro de óleo, lavamos a roupa e aproveitamos para descansar um pouco mais. Depois de tantos dias na estrada, qualquer trecho de 400 km já exige um pouco mais do corpo. Até tomamos banho de piscina no hotel. No próximo dia pegamos o deserto mesmo. Dizem que a estrada entre Iquique-CH e Calama-CH é bem quente, quase sem gasolina ou movimento. Queríamos ver se era assim mesmo. Na verdade, estávamos lá para isso.
Nos despedimos do Pacífico em Iquique-CH. Foi um bom companheiro desde Valparaíso-CH. Agora teríamos como amigo o sol, que seria o nosso guia todos os dias pela manhã enquanto prosseguíssemos para o leste, rumo ao Atlântico.
Entre Iquique-CH e San Pedro de Atacama-CH temíamos pela falta de combustível e pelo calor. O calor foi um pouco maior que nos outros dias, mas nada tão quente como o nosso sertão ou o sul/sudeste brasileiro no verão. Passamos de novo por perto de Humberstone ao nascer do sol. A coloração desgastada e as sombras deixam o lugar mais fantástico ainda. Encontramos gasolina em Maria Elena-CH, a antiga oficina salitrera que hoje em dia continua vivendo com outra indústria mineral. Não conseguimos encontrar Coya Sur-CH. Eu queria ter conhecido essas duas cidades, retratadas no livro “O Fantasista”, de Hernan Rivera Letelier. Ali ele conta a história da última partida de futebol entre essas duas oficinas salitreiras. Com muito humor, Letelier retrata o fim de uma era.
Durante essa nossa viagem temos encontrado muitas pessoas viajando com motos pequenas. O ritmo delas é bem diferente do nosso. Vão parando para descansar na sombra e conhecem mais pessoas. Fiquei pensando seriamente em comprar uma custom, que me obrigaria a mudar de ritmo. Mas talvez não seja necessário. Posso continuar com a minha XT660 desde que me esforce para quebrar os planos e andar mais devagar, parando por aí. Aposto que a Renata iria curtir muito mais as viagens deste jeito. Depois de ter me satisfeito com essa grande viagem ao Atacama, acho que no próximo momento eu gostaria de ter mais tempo para ler, escrever, conhecer pessoas, levar bem menos bagagem e contemplar os lugares. Vamos ver…
O deserto por ali não é mais tão impressionante como no começo da nossa viagem no Atacama, perto de Chanaral-CH. É um grande plano interminável. Por um lado não é mais uma festa para os olhos, mas a cabeça fica mais solta. Não sei se isso tem a ver com Zen, Tao ou meditação, mas quando você consegue entrar em um estado sem distrações exteriores, mas com a necessidade de manter a concentração, como no caso da pilotagem, então às vezes a sua mente se desloca do lugar comum. Você perde a sua individualidade e se mescla ao ambiente. Muito legal.
As cuecas que eram brancas já não estavam mais manchadas como nos primeiros dias da viagem. Adquiriram agora um tom marrom homogêneo. Descobrimos que o spray contra chulé é muito bom para diminuir o cheiro das roupas de cordura, luva e capacete.
San Pedro de Atacama é um oásis no meio do deserto. A cidade de adobe é bonita. Mas não é o meu estilo. Cheia de turistas burgueses fantasiados de hippies . Ao contrário do deserto, SPA é um monumento à distração visual. Tudo é lindo e impressionante. Legal, mas um pouco fora do meu intento por aqui. No sábado ficamos passeando intensamente durante 17 horas. Desde o nascer do sol nos geysers até depois do pôr-do-sol no Vale da Lua. O que mais gostei foi a caminhada pelas dunas no Vale da Morte, com sol a pino.
No próximo dia deixamos o Chile. Gostei muito de Valparaíso-CH, de andar de moto pelas estradas do Pacífico, das imagens do deserto e da cidade fantasma de Humberstone. Quero voltar para lá. Já San Pedro de Atacama-CH, embora lindíssima, não me agradou muito. Vai entender essa gente esquisita como eu, né?
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.