O Garoto Perdido

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

O GAROTO PERDIDO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em julho de 2010]

A saída de Iquique para o interior é fantástica. Depois de subir uma duna quilométrica, há o ponto de saída para os paragliders. Dezenas daqueles pára-quedas coloridos sobrevoam sem parar o cume da estrada.  Parece que é um dos pontos mais conhecidos do mundo para esse esporte. Também pudera, o paredão até o mar é vertiginoso.

Andando 50 km para dentro você chega em Santa Laura e Humberstone, duas ruínas de oficinas salitreiras muito bem cuidadas.  São museus a céu aberto. Santa Laura tem praticamente só a usina e a casa grande, mas vale a pena porque todos os cômodos estão mobiliados como eram no passado. Já Humberstone é uma cidade inteira, com teatro, casas, ruas e mercado. Parece que você está em uma daquelas cidades fantasma de Hollywood. Tem horas que dá medo de entrar naquelas casinhas de zinco onde se lê coisas do tipo: a família Torres viveu aqui. Eu teria ficado dias andando por ali, pensando e escrevendo minhas idéias. Mas tínhamos que seguir viagem. É um lugar para o qual voltarei.

Ninguém sabia ao certo se teríamos gasolina até Arica. Então as motos foram carregadas com galões extras. Ainda bem, pois em Huara – uma pequena cidade em volta do posto fiscal -, a mulher que vendia não estava em casa.

Na primeira parte do caminho ao norte, pelo deserto, a estrada era totalmente plana. Víamos dúzias de pequenos tornados levantando areia o tempo todo. Só éramos observados pelos geoglífos, que são figuras gigantes formadas por pedras. Os antigos moradores do Atacama faziam isso para marcar os seus caminhos migratórios. Talvez fosse para se comunicarem com seus deuses.

No meio do caminho, viramos novamente para o Pacífico. Queríamos conhecer Piságua. A estrada era completamente, totalmente, absolutamente deserta. Poderíamos ter dormido no asfalto se quiséssemos. Uma experiência inesquecível. Um pouco antes de chegar ao mar, começa uma descida em duas etapas. Primeiro, parece que você está descendo um saca-rolhas, com curvas bem fechadas. Depois há uma imensa descida em linha reta – quase sem proteção nenhuma – até o mar. Há também uma estrada antiga que dizem ser bem mais emocionante – se é que isso é possível. Piságua é uma cidade pequena, na base de uma duna gigante, sendo beijada incessantemente pelo mar. Outro lugar para voltar, para passar alguns dias aproveitando a vida.

Voltamos para o deserto, voltamos a andar para o norte. Um pouco depois a estrada deixa de ser plana e passa a ser uma seqüência de subida e descida de serras arenosas. O legal é que entre essas serras há rios, que criam vales bem verdinhos. O contraste entre a vida dos vales e as serras desertas nos faz imaginar como se deu o começo de nossa civilização lá na Crescente Fértil.

Ainda bem que levamos a gasolina, porque todas as motos precisaram de um pouco para completar os 400 km que havíamos andado.

Arica é uma cidade mais turística ainda que Iquique. Muita gente de outros países, muitas cores e muitas línguas. Todo mundo sorri o tempo todo. Há muito movimento em seus calçadões.

Como já tinha virado rotina, paramos as motos na rua. Eu e o Wagner fomos procurar hotel e um passeio para o outro dia, enquanto o Geraldinho ficou guardando nossas coisas. Encontramos tudo muito fácil, mas, como também tinha virado rotina, mentimos para o Geraldinho dizendo que não havia mais hotéis e que teríamos que voltar para Iquique. Como já era rotina, o Geraldinho fingiu que acreditou e demos boas risadas.

Com o tempo de viagem, cada vez nossas brincadeiras ficavam mais infantis, sinceras e confortantes. Passamos a parecer meninos de 4 anos de idade fazendo travessuras e aproveitando uma tarde aventureira em algum quintal cheio de mistérios.

Afinal, acho que esse foi um dos principais motivos para eu ter saído de moto para tão longe. Encontrar esse menino perdido. No extremo norte do Chile, de onde faríamos a volta para casa, finalmente o reconheci no espelho do banheiro do hotel. O menino estava escondido atrás de uma barba de meses, fantasiado de homem maduro. Enquanto eu tirava a areia do deserto de minhas rugas, o menino abriu um sorriso de orelha a orelha, achando engraçado tanta preocupação com a limpeza. Ele tinha me encontrado.

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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.

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