No Topo Quente do Mundo

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

NO TOPO QUENTE DO MUNDO
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]

Em Copiapó nós tivemos muita sorte, várias vezes. Para começar, tínhamos preferido não ver o Rally Dakar quando estávamos em Valparaíso. Afinal, não teríamos visto nenhuma parte técnica, apenas – no máximo – o circo colorido. Não se pode ter tudo…

Mas vejam que o nosso guia turístico para Ojos del Salado – o vulcão mais alto do mundo – era um piloto de moto do Dakar. Infelizmente para Gino Bianchi sua moto tinha quebrado, por isso tinha desistido da competição.

Saímos para o passeio em uma caminhonete 4×4 logo de manhã. O dia estava bem frio. Na subida, saimos da rota normal – que teríamos feito se tivéssemos ido de moto – pegando uma estradinha de areia secundária. Era tudo cinematográfico. Em certos lugares, andávamos a centímetros de um desfiladeiro de centenas de metros. Em outros lugares, para nossa mais completa surpresa, o carro saía da estrada repentinamente para pegar algum atalho. Claro que nosso guia-piloto sabia o que estava fazendo, mas nós ficávamos com o coração na boca achando que tinha chegado a nossa hora.

O lugar era completamente seco, a não ser em pequenos trechos por onde descia a água do degelo. Nesses raros fios d´água havia sempre uma grama verdinha e um pouco de capim que os guanacos comiam. Bem, talvez fossem lhamas, ou vicunhas, ou ainda alpacas. Mas tenho certeza que era um desses mini-camelos que veríamos o tempo todo nos Andes.

A primeira parada foi na Laguna Santa Rosa, com sua água verdinha (ou azulzinha, pois, segundo a Renata, eu tenho um problema em diferenciar essas duas cores) e cheia de flamingos. Não era um lugar tão alto, mas já sentíamos um pouco o efeito do ar rarefeito. Depois passamos perto do Nevado Tres Cruces, formação montanhosa que dá nome ao parque nacional.

Lá em cima, a 4.000 m de altitude, chegamos à famosa Laguna Verde. Ao fundo fica o Ojos del Salado, montando um dos mais conhecidos cartões postais do Chile. A água era tão fria que eu só tive coragem de molhar as canelas, que foram logo depois aquecidas em uma das várias piscinas térmicas espalhadas por lá.

Ficávamos parados, olhando a vista dos deuses e ouvindo as mil histórias do Dakar. O Gino não se cansava em responder as nossas perguntas de como era feita a preparação, as estratégias, as emoções da competição e o orgulho de ser um representante do Atacama.

Quando passamos pelo Passo Libertadores – alguns dias atrás, na entrada para o Chile – não tínhamos sentido muito o efeito da altitude, mas ali na Laguna Verde tudo era muito diferente. Uma caminhada de 10 passos tinha que ser muito bem pensada, para não exaurir o resto da energia ou arriscar uma queda. Antes de ir para o Chile, ficava um pouco preocupado com ter falta de ar. Mas não se tem nenhuma sensação de asfixia, apenas muito cansaço e dor de cabeça.

A descida – ao contrário da subida, que foi por estradinhas tortuosas – era feita em grandes rampas. Às vezes dava a impressão de que descíamos em linha reta por mais de um quilômetro. No final, foi um passeio de 11 horas, por mais de 500 km, feito em plena Cordilheira dos Andes e ainda levados por um piloto do Dakar. Querem mais?

Já de volta a Copiapó, levei a minha moto na oficina do Gino para ajustar a corrente. Chegando lá, fiquei desconfiado quando um funcionário bem idoso é que cuidou do serviço. Eu tinha visto uma oficina da Yamaha na entrada da cidade, então pensei que poderia ser educado ao deixar o velhinho cuidar da corrente, mas que depois levaria para os profissionais de verdade.

Comecei ficar irritado quando ele começou a limpar a corrente elo por elo. Para que tanta lerdeza assim?

Mas não é que todo cuidado tinha uma razão? Ele descobriu que um dos elos da minha corrente estava caindo. Provavelmente perderia minha corrente no próximo dia. No mínimo teria um trabalhão em conseguir ajuda no deserto. No máximo teria uma queda perigosa.

Naquele momento eu tive a mais completa e clara certeza de que a minha moto devia ficar nas mãos daquele homem ali curvado. Suas mãos estavam sujas de graxa, mas não havia uma gota de suor em sua roupa, não havia um único fio de cabelo desarrumado. Sem querer desmerecer o serviço da Yamaha – que acabei nem conhecendo -, há certos momentos na sua vida que você sabe – inexplicavelmente – exatamente o que fazer.

Mais sorte ainda que havia sobrado uma das correntes sobressalentes do Dakar. O senhor nos explicou como deveríamos tirar os elos a mais, o que foi feito em uma oficina ali perto. Depois ele mesmo instalou a corrente na moto.

No outro dia, quando saíamos de Copiapó, perto de um outdoor em que a cidade manifestava seu orgulho por ter um cidadão no Dakar, vi novamente a oficina da Yamaha. Eu não tinha a menor dúvida de que a minha moto agora estava 100%. Fiquei pensando na sorte que tivemos em aprendermos um monte sobre o Dakar, andarmos por estradas vertiginosas desconhecidas por viajantes desavisados, termos encontrado uma pessoa cuidadosa o suficiente para descobrir o problema na transmissão e ainda por cima acharmos uma corrente sobressalente.

É exatamente em busca desses imprevistos bem-vindos que saímos de moto pelas estradas do mundo.

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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.

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