O Peso da Viagem

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

O PESO DA VIAGEM
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]

Muito já se escreveu sobre motos representando a vida real. Viajar de moto obriga você a levar só o que é importante, se livrando do peso morto. Na minha vida civil, longe das motos, procuro seguir com a mesma objetividade. Não gosto de móveis, imóveis e roupas. Tenho só um par de sapatos que uso até furarem. Tenho duas calças, que uso até rasgarem. Só tenho uma luxúria material: minhas estantes são cheias de livros. Engraçado que durante essa viagem boa parte do peso que levei também era de livros. Alguns comprados no caminho, outros que foram a viagem toda me fazendo companhia. Afinal, como alguém pode sair de casa sem pelo menos um livro de ficção, um livro técnico, um livro sobre motos, um livro de algum grande sábio e um livro sobre o lugar que vai conhecer? Mas, o mais engraçado é que li muito pouco, porque sempre chegava tarde nos hotéis, tinha um monte de detalhes para resolver e depois caía na cama para acordar bem cedinho no outro dia. De certos pesos não se livra nunca. Ainda bem.

Eu tenho muito o que aprender ainda. Mas alguma coisa já melhorou. Antes de sairmos de Recife, eliminei muita coisa que teria gostado de levar. Várias ferramentas ficaram para trás. Eu só levei uma capa de chuva, o que me fez molhar até os ossos na parte em que a Renata esteve na garupa. Ainda, ao longo da preparação já tinha visto que não valia a pena levar um monte de coisas, como uma filmadora que nunca usávamos ou a luva impermeável que levava mais de 5 minutos para ser colocada em cada parada. Depois de tantas viagens pelo Brasil, pensei que já estava escolado nessa questão de bagagens. Mas, logo no primeiro dia de viagem, ao chegar no hotel em Feira de Santana, já tive que fazer uma grande rearrumação. Isso porque, quando saí de casa, parecia lógico levar todas as cuecas juntas, todos os livros juntos. Só que ao final de cada dia eu precisava de apenas uma cueca e apenas um livro. Então, a partir dali, na parte de cima da mochila iam apenas as coisas de uso imediato. Uma peça de cada tipo. Mesmo assim, a cada nova parada, descobria que lá no fundo da mochila ficavam coisas que eu não estava usando. Todo esse peso morto ia sendo eliminado sem misericórdia. No final, descobri que podia ter viajado o tempo todo só com uma calça, uma jaqueta, um par de luvas, outro de botas, duas camisetas, dois pares de meia, uma cueca – que, como todos sabem, podem ser usadas de frente e avesso -, um caderno, uma caneta, a carteira de documentos e uma máquina fotográfica.

Uma cena que simboliza bem essa necessidade de nos livrarmos do peso morto foi quando estávamos almoçando em Huara, no meio do Atacama, ansiosos com o que viria a seguir. A Dona Maria, única vendedora de gasolina em um raio de centenas de quilômetros, não estava em casa. Ainda bem que nossas motos estavam carregadas de galões cheios até a boca. Isso sem contar o meu tanque modificado para levar 50% a mais de combustível. Mas, mesmo assim, não sabíamos se seria o suficiente para descermos o abismo que levava até o porto de Piságua. Minha moto continuava bebendo mais que o comum, não adaptada à gasolina sem álcool do Chile. De repente, da janela do pequeno restaurante de beira-de-estrada, vimos uma garota de moto descansando debaixo de uma árvore. O menina tinha parado para refrescar a garganta, aproveitando a sombra e um picolé. Sua Harley Davidson de 1200 cc não levava quase nenhuma bagagem. A roupa dela se resumia a uma calça jeans, a clássica camiseta branca, um par de tênis e uma jaqueta de couro preta. Trocamos algumas palavras e nos despedimos. Mas aquela visão me marcou profundamente. Quanto contraste entre a HD pelada e todo o peso que carregávamos em nossas motos. Quanta diferença entre a nossa ansiedade por chegar ao destino planejado e aquela singela parada para deixar o mundo passar diante de seus olhos, colocando a eventual falta de gasolina como algo secundário na ordem das coisas do universo. Quando eu crescer quero ser assim.

No final das contas – como diz o monge na propaganda de automóvel -, “Felicidade é não ter mais do que se pode carregar.”

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