Livro: De Motoca na Estrada
Fábio Magnani
[publicado originalmente em junho de 2010]
Já estávamos há 10 dias na estrada, a 3.500 km de Recife. Depois de dois dias descansando em Foz do Iguaçu, passamos definitivamente para o lado argentino, para cruzarmos seus 2.500 km em 5 dias. Os trâmites da fronteira foram bem fáceis, com todos os funcionários nos ajudando em tudo.
Foi delicioso andar os primeiros quilômetros em um país diferente, na minha própria moto, fazendo meu próprio caminho. O clima pela manhã estava delicioso, e o sol marcava bem o contraste entre o verde escuro das árvores e o verde claro do mato rasteiro. O asfalto era muito bom e quase não havia trânsito, o que fazia com que o passeio ficasse perfeito.
Dizem que quando encaramos o novo, sentimos medo. Claro que fiquei um pouco ansioso, mas as sensações de liberdade e aprendizado eram muito maiores que o medo. Se queremos a liberdade, não temos medo do novo.
A primeira diferença que senti por estar em outro país foi provocada pelas placas de trânsito. Não entendia direito o que queriam dizer. Ao chegarmos pelo primeiro pedágio, não ficava claro se as motos deviam passar pela cancela ou pelo pequeno desvio, mas os policiais nos orientavam com muita cortesia.
A primeira parada foi em um posto de gasolina, onde uma moça sorridente ficou um tempão explicando como se falava um monte de coisas em espanhol. Acho que essa primeira impressão foi fundamental para que gostássemos muito de todo o restante da nossa viagem pela Argentina. A Renata teve seu primeiro contato com os alfajores, um poderoso vício do qual não conseguiu mais se livrar.
Ainda no primeiro dia, depois de sairmos da agradabilíssima ruína das Missiones, o dia começou a esquentar muito. Acho que foi o dia mais quente que já passei na estrada, o que é interessante, levando-se em conta que ando muito no sertão nordestino.
Depois de Posadas, as cidades começam a ficar muito espaçadas entre si. Quando paramos em Ituzaingó para abastecer, descobrimos que não havia gasolina em toda a região. O negócio foi ficar esperando até o início da noite para abastecermos. Quando enchi o tanque, percebi que minha moto estava fazendo 14 km/litro, ao contrário dos comuns 20 km/litro. A culpa era da gasolina sem álcool, que bagunçava a regulagem do motor. Ainda bem que tinha trocado o tanque antes da viagem por um maior. Como já era tarde para continuarmos, procuramos um pequeno hotel da cidade, sem placa nenhuma na fachada e que tinha duas mulheres fantasmagóricas como donas. Os quartos eram imensos, repletos de móveis antigos. Para ajudar mais ainda, de 10 em 10 minutos, todas as luzes se apagavam por causa de alguma sobrecarga, voltando depois de um pouco mais de 1 minuto. Como eu estava com a Renata no quarto, tudo era motivo de brincadeira, mas se estivesse sozinho acho que não teria fechado os olhos nem para piscar naquela noite. Ficamos brincando sobre esse hotel fantasma a viagem toda.
O segundo dia na Argentina começou do mesmo jeito, com um clima ameno e estrada deserta. Mas logo que chegamos em Corrientes, ao invés do calor de Posadas, pegamos a maior chuva de nossas vidas. Poças, rajadas, raios, neblina e muito frio. Mas fomos devagar, sem maiores incidentes. Esse tipo de lugar, isolado do mundo, é predisposto a espíritos, tanto humanos como da natureza.
Fomos parados pela primeira vez para verificação de nossos documentos. Ao contrário das histórias que ouvimos, os policiais foram muito educados e corretos.
Resolvemos parar na cidade de La Paz, uma cidade balneário do Rio Paraná. Uma cidadedezinha cheia de histórias, hotéis legais, limpa e organizada. À noite tivemos a primeira visualização de como é a vida noturna na Argentina. Ao invés de ficarem em casa assistindo ao jornal ou novelas, todos saem para a rua, enchendo as praças e bares. Muito gostoso. A cidade tinha um prédio que misturava uma biblioteca com cinema! Para todo lado que olhávamos, havia Citroens antigos passando, bem conservados. As sorveterias ofereciam sorvetes com nomes que nunca sonháramos. Isso tudo sem contar a cerveja Quilmes gelada. Parecia uma cidade brasileira dos anos 70, mas com muito mais vida e beleza.
A internet era muito lenta – coisa com a qual iríamos conviver durante toda a viagem. Como nossos celulares não funcionaram fora do Brasil, tínhamos que parar todos os dias nos telecentros para pedirmos às telefonistas que fizessem as ligações. Tudo uma delícia.
O próximo dia, até Córdoba, foi com muito trânsito e sem maiores aventuras. Vi pela primeira vez plantações de feno e de girassol. O túnel que passa por debaixo do Rio Paraná, em Santa Fé, é legal. O calor voltou, junto com um trânsito mais pesado. O único erro que cometemos foi a insistência de pararmos em Córdoba para dormir. Pagamos caro, demoramos várias horas para encontrarmos um hotel razoável e não conhecemos nada de interessante. Só vale a pena parar em uma cidade grande se você puder deixar a moto no hotel e passear durante um dia todo. Se não for assim, todo o trabalho é só para dizer que passou na cidade mesmo. Total perda de tempo. A única coisa legal foi o hotel bem antigo, que estava sendo reformado. Tinha até daqueles elevadores cercados por grades. Era amedrontador andar sozinho por aqueles corredores tortuosos. Parecia que você estava em um hospital macabro do Stephen King. Mais histórias para contar aos nossos netos.
Sentimos que, conforme nos distanciávamos do Brasil, as pessoas tinham cada vez mais dificuldades em nos entender. Mas como sempre tinham muita paciência, tudo se acertava.
Saímos bem cedinho de Córdoba, para o dia mais legal até então. Subimos uma serra de 2240 km de altura, a maior que já tinha estado em minha vida. Embora o sol estivesse forte, o frio era grande em cima da moto. As curvas e o visual pareciam de filme, com curvas ladeadas por abismos infindáveis. A pilotagem, embora um pouco arriscada, fazia com que você sentisse a vida fluir por suas veias. Inesquecível.
De Villa Dolores a Quines, parece que entramos em outro país. A estrada é plana, desértica e deserta. O calor é muito forte. Dali, preferimos encarar 200 km por uma estrada sem gasolina, curvas ou movimento, até Encón. Se é que podemos chamar Encón de cidade, pois tem meia dúzia de casas, um entroncamento, uma barreira policial e uma bomba de gasolina. Só a bomba, sem o posto. A vegetação por ali parece muito com a nossa caatinga.
Perto de Mendoza, já podíamos ver os Andes, nosso primeiro grande marco na viagem. Assim como em Córdoba, a estada em uma cidade grande foi muito estressante. Busca de hotéis, de câmbio e de restaurantes. Para piorar, tivemos uma grande briga que quase dividiu o grupo em dois. O problema foi que deixamos que o cansaço diário, a ansiedade e a saudade fossem expressados como irritação com os outros. Essa demonstração de irritação acabou refletindo em agressividade. Logo a agressividade virou conflito aberto. Mas aqui a sabedoria do Geraldinho foi fundamental. Primeiro conversou separadamente com todo mundo, depois fizemos uma reunião em que todos puderam falar abertamente. Ali ficou bem claro que ninguém tinha nada contra ninguém, muito pelo contrário, mas que estávamos descontando nossas angústias nas pessoas que não tinham nada a ver com aquilo. Todos disseram o que estava incomodando e pediram desculpas. Mas, o mais importante de tudo é que fizemos uma promessa de sempre conversar abertamente, para não criar aquela situação novamente.
Fiquei muito orgulhoso por ter passado por aquela experiência. Acredito que a maioria das viagens crie momentos como esse. A diferença é se o grupo finge que não há nada – guardando rancores para todo o sempre -, se separa ou se supera. Nós passamos pelo mesmo problema que todos passam, mas saímos vencedores. Legal!
Com a amizade fortalecida e a alma lavada, subimos os Andes. Uma experiência única. A estrada é gostosa, cheia de curvas, com um vento apocalíptico. O visual, então, sempre nos cercando com escarpas quilométricas.
A fronteira com o Chile é bem diferente da que passáramos para entrar na Argentina. Uma longa fila, burocracia e um ambiente militarizado. Mas todos muito educados e corteses também. Em uma altitude de 3.500m, ao cair da tarde, o frio começou a pegar forte. Achávamos tudo engraçado, até a nossa completa falta de força – motivada pelo pouco oxigênio – para fazer qualquer movimento, por mais simples que fosse.
Descemos os Andes já com o sol se pondo. As montanhas pareciam grandes ondas de piche, esperando para nos devorar. Continuamos no caminho completamente escuro até que encontramos a cidade de Los Andes. No nosso primeiro contato com os chilenos, tivemos novamente uma ótima impressão. Como estávamos muito cansados, paramos no primeiro hotel que encontramos. Era muito legal, mas caro. Para compensar, fomos comer em um restaurante que imaginamos ser bem ruim, pois a placa indicava preços baixos. Mas ao entrarmos na edificação, nos encontramos dentro de um pátio muito charmoso. As duas senhoras que nos atenderam trouxeram uma comida deliciosa, separada em entrada, prato principal e sobremesa. Todos os pratos, embora simples, eram enfeitados com muita habilidade e carinho.
Os chilenos não entendiam nada do que falávamos. Mas as mímicas resolviam. Eu nunca deixava de ficar surpreso como todos que encontrávamos na estrada podiam ser tão interessados por nos compreender e ajudar.
Do pé dos Andes, já no lado chileno, eu podia contemplar os nossos últimos 5 dias. Cordilheiras, serras, calor, frio, chuva, deserto, hotéis fantasma, brigas, renovação em nossa amizade, falta de gasolina, língua desconhecida e muito carinho oferecido por todos. A Renata já tinha viajado mais de 3.000 km em minha garupa, em uma média de 600 km/dia. Tudo estava perfeito. Agora era só colocar a cabeça no fino travesseiro do hotel de Los Andes, pegar no sono e sonhar com Valparaíso, o Pacífico e o Atacama.
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Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.