Ficções Malucas

© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: De Motoca na Estrada

FICÇÕES MALUCAS
Fábio Magnani
[publicado originalmente em maio de 2010]

“A quilômetros do santuário de Andréa Dória, um desejoso cachorro de humor mutante guarda um sinal de trem na retidão do deserto frio.”

Quando viajo para longe, às vezes levo ferramentas, roupa de frio e bússola. Mas às vezes não, quando não quero me incomodar com muito peso. Quando saio de moto aqui por perto, às vezes levo a capa de chuva e a câmera fotográfica. Só que há dias em que dá vontade de sair só eu e a moto mesmo, então arrisco ficar molhado. Mas duas coisas eu não deixo de levar nunca, seja perto ou longe: papel e caneta. Quem já teve o desprazer de viajar comigo, sabe que toda vez que eu paro a moto, logo pego meu bloquinho para anotar alguma coisa. Pode ser algo para contar para os outros depois, algum novo pensamento para lapidar mais tarde ou então alguma coisa forte que vale a pena registrar. Quando eu viajo sozinho, paro o tempo todo no acostamento para tirar fotos ou fazer minhas anotações. Já quando viajo em grupo, espero a próxima parada para não atrapalhar o comboio.

Isso normalmente funciona bem. Mas lá no Atacama, muitas vezes ficávamos mais de 3 horas em cima da moto. Durante esse tempo você pensa nas mais fantásticas idéias, se lembra de fatos escondidos na memória e experimenta visuais impressionantes. Você quer lembrar de tudo, tanto para desenvolver melhor, quanto para contar para os seus amigos. Só que isso não é muito fácil. Imagine a cena: a solidão do deserto te faz pensar sobre a importância da amizade entre os homens, quando de repente você se depara com uma montanha multicolorida de 500m de altura, bem na sua frente. Você deixa de filosofar na hora para apreciar o visual. Depois acaba se acostumando com a montanha. Relaxando um pouco, se lembra de como gostava de brincar próximo aos trilhos do trem em sua cidade natal. Depois a moto começa a fazer um barulho estranho, daí você se esforça para se lembrar de tencionar a corrente na próxima parada. Nisso tudo, um caminhão corta o seu caminho, o que faz você ficar fulo da vida, xingando várias gerações passadas do motorista. Daí… o que era mesmo que eu estava pensando antes de aparecer a montanha?

Fazer o que? Deixar os pensamentos esquecidos, como fazemos com sonhos legais assim que acordamos? Ou parar toda hora para registrar as idéias?

Com o tempo, acabei criando uma forma de guardar um monte de idéias em poucas palavras. Por exemplo, entre Humberstone e Quillaga, sempre que pensava em algo diferente, ia montando uma imagem em minha cabeça. Nesse caso, a imagem era de um cachorro vira-lata sentado quieto na beira da estrada, à sombra de um sinal de trem. Talvez estivesse triste por causa de sua dona, que jazia em um santuário a quilômetros dali: “A quilômetros do sensível santuário de Andréa Dória, um desejoso cachorro de humor mutante guarda um sinal de trem na retidão do deserto frio.”

Praticamente cada palavra dessa frase representa um dos pensamentos que tive naquela manhã.

A primeira coisa é como as placas e mapas daquela região não conseguem chegar a um acordo quanto à quilometragem. As distâncias entre as cidades mudam dependendo de onde se vê. Para apimentar mais ainda a questão, as pessoas dali em geral não gravam quantos quilômetros há entre uma cidade e outra, mas sim quantas horas de viagem você levará para chegar ao destino. Parece que você está em uma canção do Luiz Gonzaga.

O sensível vem da lembrança que tive da história do Che Guevara, que passou por ali em sua viagem de moto. O Che tinha uma grande sensibilidade para compreender os problemas vividos pelo povo. Depois baseou as ações de sua vida naquilo que tinha visto. O fato de ter – talvez – agido errado, não invalida o que sentiu. Por isso não acho legal  quando alguém combate fortemente o Che pelo o que fez, mas se esquece de sua imensa importância como exemplo de pessoa que se importa e que pode compreender os outros. Durante minhas viagens de moto, sempre tento ser sensível para apreender o que se passa por onde eu passo.

Os santuários de beira de estrada no Chile são coisas imensas e bem organizadas. Muito diferentes das pequenas cruzes que temos no Brasil. Somando-se a isso os cemitérios fantasmas da época do salitre e a solidão do deserto, às vezes dá a impressão que se está andando pela terra dos mortos. Ainda bem que estava com meus amigos, porque sou um ateu que tem medo de fantasma.

Andréa Dória é o nome de uma música do Legião Urbana. É um pouco triste, pois versos do tipo “nada mais vai me ferir, é que já me acostumei, com a estrada errada que segui e com a minha própria lei”, acabam demonstrando uma certa resignação. Mas, quando escolhi o título de uma música para montar a minha imagem, eu estava pensando ali na estrada em como transmitir por escrito as emoções que se sente durante uma viagem de moto. Acho que as músicas podem fazer isso. Vou tentar a técnica em outras crônicas.

O desejoso é fácil de explicar. Sempre que tinha saudade da Renata, lá dentro do meu capacete, ficava cantarolando a música do Frejat: “Por você … desejaria todo dia a mesma mulher”. Só que nunca conseguia lembrar de contar para ela quando telefonávamos, então inseri a palavra na imagem para depois colocar no bloquinho quando parasse.

O humor mutante vem de uma outra preocupação minha na escrita. Como o seu humor na hora da escrita muda os eventos que você conta? Por exemplo, um evento em que brigou com um guarda argentino. Se você estiver irritado na hora de escrever, vai falar muito mal da polícia argentina. Se estiver de bom humor, talvez escreva de como você conseguiu enganar o guarda, saindo ileso.

O guarda da imagem é por causa dos policiais chilenos que usam um colete verde limão fosforescente. Eles ficam com o radar no meio da estrada com aquele colete que pode ser visto a quilômetros de distância. Não entendi muito bem a técnica deles, mais achei muito prática.

Os chilenos sempre param na estrada quando há um cruzamento com uma linha férrea. Mesmo que estejam sozinhos, em uma linha de trem no meio do deserto, em uma posição de onde se vê tudo. Do que eles têm medo? De um trem fantasma aparecendo do nada? Agora, o mais interessante é que eles são capazes de fazer uma manobra muito perigosa logo depois de terem respeitado o sinal de cruzamento. Vai entender.

No Chile, os caminhoneiros dão sinal de ultrapassagem ao contrário do que no Brasil. Por exemplo, quando dão o sinal para a esquerda, significa que você pode ultrapassar. Depois de alguns sustos você se acostuma.

A retidão do deserto frio é um comentário sobre a estrada entre Humberstone e Quillagua. Na ida, fomos sempre perto do Pacífico, com uma estrada muito acidentada. Na volta de Arica, viemos pelo deserto propriamente. Ali quase não havia paisagem nenhuma. Um grande plano muito seco, uma estrada quase sem curvas ou mudanças de nível. Além disso, fazia um friozinho na estrada, pelo menos até as 10:30, ao contrário do que esperávamos.

E o cachorro da imagem? Bem, não pensei em nada quando estava lá, mas precisava de uma personagem para dar fechamento à frase. Mas, então, que fique de homenagem à nossa cachorra Kika, que morreu alguns dias depois que voltamos de viagem. Ela já estava bem velhinha, mas mesmo assim nos esperou para falar um ciao.

Sobre as frases malucas, tenho uma porção em meu bloquinho. Mas ficam para outras crônicas. Por enquanto, os que não podem esperar que fiquem imaginando o significado da frase: “Visto do oásis, o sinal da montanha foi um acidente colorido na tempestade barriguda”.

Apresentação. A Viagem ao Atacama foi realizada em torno de janeiro de 2010. Durante 38 dias, quatro amigos – Fábio, Renata, Wagner e Geraldinho – percorreram cerca de 15.000 km em suas motos. Com saída e chegada em Pernambuco, passaram por grande parte do Brasil e conheceram a Argentina e o Chile. A história toda começa em meados de 2008 – lá no início da preparação -, mas não tem tempo para acabar, pois os reflexos continuam aparecendo a cada dia que passa. Planejamento, amizade, trabalho em time, resolução de conflitos, natureza, estrada, crescimento pessoal, aprendizado e amor pelas motocicletas. A viagem é contada em três grandes séries: Planejamento (textos escritos antes da partida), Diário da Viagem (relatos publicados durante a viagem) e Crônicas do Atacama (pós-escritos, da qual faz parte este texto). Nunca é demais dizer que esta seção não tem fim programado. Se gostar, volte de vez em quando para ver as novidades.

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