Livro: Bicicletas em Equilíbrio
Fábio Magnani
[publicado originalmente em janeiro de 2013]
Se eu tivesse uma máquina de deslocamento espaço-temporal, daquelas de cinema, que te permitem ir a qualquer lugar e qualquer época, eu faria três viagens. A primeira para a Grécia Antiga, onde eu viveria aquele momento de grande ebulição na Arquitetura, no Drama, na Política e na Filosofia. Caminharia com Sócrates, lutaria na Batalha de Maratona e ouviria Péricles falar nas assembleias. A segunda viagem seria para a Inglaterra no século XVII, durante a criação da Royal Society of London for Improving Natural Knowledge, onde eu assistiria o retorno da razão ao nosso mundo. Sei que provavelmente estou errado em confiar minha visão – parcial, distorcida e romantizada – sobre o florescimento da Ciência em apenas quatro livros: From Dawn to Decadence, A History of Western Philosophy, An Instance of the Fingerpost e The Baroque Cycle; mas de qualquer forma deve ter sido uma época muito divertida. A terceira viagem, bem mais humilde do ponto histórico, mas nem por isso menos importante para mim, seria para Marin County, um condado ao norte de São Francisco, onde surgiram as Mountain Bikes.
Óbvio que as bicicletas não são tão importantes como a Filosofia ou a Ciência. Mas há vários aspectos que me atraem bastante para a sua história. Primeiro, por ter ocorrido recentemente, temos mais acesso aos fatos. Segundo, as bicicletas são engenhocas, o que naturalmente agrada a um engenheiro mecânico como eu. Terceiro, são máquinas de duas rodas, um assunto que tem sido central à minha vida nos últimos anos – como qualquer leitor aqui do blog há de ter percebido. No entanto, o que mais tem me atraído no nascimento das Mountain Bikes é que se trata de um ótimo exemplo para aprender o que é necessário para criar uma indústria saudável de motos e bicicletas aqui em nossas terras. Isso porque, para uma revolução desse tipo, é preciso ter as pessoas certas, ideias novas, um grande conhecimento e também uma conjuntura favorável. Somente com o alinhamento desses fatores é que as coisas acontecem. Por isso a importância de conhecer a história, para saber o que precisamos mudar e contra o que estamos lutando.
Com o estudo da história podemos reconhecer os elementos favoráveis aos veículos de duas rodas na nossa condição atual (e.g., trânsito parado, crescimento econômico, preocupação com o meio ambiente e busca de uma melhor qualidade de vida) e o que fazer para minimizar os elementos desfavoráveis (e.g., monopólio de empresas japonesas tanto nas motos quanto nos componentes das bicicletas, conservadorismo tecnológico das fábricas chinesas que estão entrando no mercado sem qualquer melhoria aparente, carência de investimento em pesquisa e desenvolvimento aqui no Brasil, preconceito contra quem anda de moto e de bicicleta, culto aos automóveis, e reverência total a uma indústria nacional de petróleo).
Sabemos que queremos uma indústria nacional saudável. O que significa dizer que queremos produzir veículos de duas rodas voltados para as nossas necessidades, através do projeto e da produção aqui mesmo no Brasil. Significa dizer que queremos diminuir ao máximo o impacto ambiental desses veículos individuais, aumentando a eficiência e apoiando o seu uso apenas quando estritamente necessário. Significa dizer que queremos minimizar os acidentes, seja com veículos mais seguros ou com mudanças no trânsito. Significa dizer que queremos pulverizar a produção, destruindo os monopólios atuais.
Queremos motobicicletas elétricas com carregamento solar, com mecanismos eficientes, aerodinâmica inteligente, geometria ajustável, baixo peso, um sistema eletrônico que promova segurança efetiva no trânsito e biossensores que maximizem o bem-estar do motobicicleteiro – seja para suar menos, exercitar-se mais, poluir pouco, gastar menos ainda, expressar individualidade ou então só para ter muita diversão ao rodar por aí.
Para fazer a coisa direito por aqui, é importante compreender quais foram as condições para que certas fábricas tivessem tanto êxito no passado. No mundo das motos, por que a Indian (EUA), DKW (Alemanha), NSU (Alemanha), BSA (Inglaterra), Piaggio (Itália) e Honda (Japão) foram tão fortes em suas épocas? Por que a Honda tem o monopólio de motos no Brasil? Aliás, tenho certeza que essa história da Honda no Brasil ainda será bem contada um dia. No mundo das bicicletas, por que a Shimano (Japão) consegue dominar quase que completamente o mercado internacional de componentes de qualidade para bicicletas? Isso sem contar a história da Villiers (Inglaterra) que dominou a produção de motores dois tempos, a Pope (EUA) que controlava o mercado de bicicletas no século XIX e as fábricas chinesas que vêm tomando completamente o mundo, mas sem trazer as inovações que desejamos. O que todas essas empresas fizeram de certo? O que fizeram de errado? O que queremos adaptar para o nosso caso? Quais são as fábricas modernas que estão desenvolvendo processos baratos para a fabricação da fibra de carbono, células combustíveis e biossensores?
São muitas historias diferentes, muitas conjunturas diferentes e muita sorte de se estar no lugar certo na hora certa. Mas alguma coisa dá para generalizar, como o fato de que para montar uma grande indústria, o fundamental é ter uma massa crítica de pessoas: inventores, engenheiros, pilotos, ativistas, agitadores, atletas, políticos, empresários, curtidores, artistas, jornalistas, financiadores, sindicalistas, festeiros, acadêmicos e produtores culturais.
No meio dessas histórias todas, uma das mais legais, que retrata muito bem a importância da reunião das pessoas certas, é o desenvolvimento das Mountain Bikes, que ocorreu nas décadas de 1970 e 80. Por ter sido realizada por pessoas comuns, e por ser relativamente recente, temos acesso a muito do que aconteceu. O livro The Birth of Dirt – Origins of Mountain Biking (2008, 2a ed.), de Frank Berto, conta como tudo aconteceu e, principalmente, nos dá um ótimo exemplo do que é necessário para fazer a revolução que esperamos no mundo das duas rodas.
Frank Berto, o autor do livro, viveu em Marin County durante os anos da invenção da Mountain bike. Na época ele escrevia para a revista Bicycling e por causa disso conheceu todos os principais personagens. Em 1997, Berto preparou um artigo para apresentar na International Cycling History Conference. A ideia era responder à pergunta: “Quem inventou a Mountain Bike?” Durante a escrita, ele conseguiu falar várias vezes com Gary Fischer, Charlie Kelly e Joe Breeze, fazendo com que o artigo passasse por mais de quinze versões. Após a apresentação do trabalho na conferência, o texto foi expandido e transformado em um livro. Em 2008, após o esgotamento da primeira edição, saiu uma segunda, que tem como ponto legal o maior distanciamento histórico, que permite dizer com mais certeza que as Mountain Bike’s vieram para ficar.
Embora a bicicleta tenha sido inventada em 1817, seu grande desenvolvimento tecnológico aconteceu nos anos 1860, com a instalação dos pedais. Até hoje ninguém sabe direito quem foi o inventor, a briga girando em torno de Lallement, Michaux e os irmãos Olivier. Provavelmente foi uma mistura, um vindo com a ideia, outro com a fabricação e os últimos com o financiamento. O mesmo acontece com o nascimento das Mountain Bikes. A diferença é que, por ter acontecido nos anos 1970, todos envolvidos ainda estão vivos para serem entrevistados.
Os últimos 15 anos do século XIX são considerados a Era de Ouro das bicicletas. Havia muito desenvolvimento tecnológico, uma grande produção mundial e as bicicletas eram consideradas artigos de status. Na virada para o século XX tudo mudou. As bicicletas saíram dos holofotes. Houve grande retrocesso tecnológico, com as bicicletas ficando mais pesadas. As únicas exceções eram as road bicycles, que são aquelas bicicletas de corrida, bem magrinhas e com o guidão dobrado que permite ao ciclista andar bem abaixado, diminuindo assim a resistência aerodinâmica.
Bem, o fato é que nos anos 1970 havia dois tipos de bicicleta: clunkers, que são as bicicletas comuns para o dia a dia, sem marchas e com pneus largos; e as road bicycles, que são leves e eficientes, mas duras e pouco resistentes. No Brasil, por exemplo, tínhamos a Monark Barra Circular (o correto seria chamá-la de roadster, mas serve como exemplo grosseiro de clunker) e a Caloi 10 (uma road bike na forma, mas uma clunker na tecnologia).
Assim era o mundo inteiro em 1970: ou você tinha uma bicicleta pesada sem eficiência, ou então uma bicicleta leve sem resistência. Nesse contexto, alguns jovens ciclistas hippies de Marin County começaram a usar clunkers para descer montanhas. O peso não era muito importante, já que para baixo todo santo ajuda. Mas mesmo as clunkers comuns não eram tão resistentes assim para suportar os impactos. A cada bicicleta quebrada, eles compravam mais uma no ferro velho. Com todos esses testes, acabaram descobrindo que uma antiga bicicleta, a Schwinn Excelsior, aguentava muito bem a parada.
Não demorou muito para essa gente ter a ideia de colocar um sistema de mudança de marchas, instalar um freio que parasse bem nas ladeiras e a trocar os manetes por uns de moto. Muita gente participou desse desenvolvimento, mas Gary Fisher é um dos que mais se destacou historicamente – sendo considerado como o pai das Mountain Bikes por alguns fãs mais apaixonados.
Esses hippies de Marin County tiveram muita sorte, porque encontraram por ali uma antiga oficina de bicicletas que tinha mais de uma centena de quadros Schwinn espalhados como sucata, o que manteve o fornecimento contínuo durante a fase de testes e de expansão.
A turma que se encontrava nas corridas morro abaixo incluía: pilotos de testes que eram ótimos ciclistas, fuçadores que podiam fazer qualquer modificação nas bicicletas, fotógrafos, festeiros, comerciantes e escritores. Essa riqueza de talentos e paixões produziu uma nova cultura, o que é algo muito maior do que simplesmente desenvolvimento tecnológico.
Esse é um ponto fundamental para entendermos como tudo aconteceu, pois não adianta simplesmente desenvolver as máquinas. É preciso de gente com paixão para tirar as fotos e para escrever os textos nas revistas, gente com competência para fazer um design atrativo, gente com coragem para fazer os testes de campo, gente com talento para comercializar os produtos, e gente com estômago forte para conseguir financiamento.
O problema é que os quadros que estavam na sucata da Legendary Wocus acabaram. No problema, pois Joe Breeze e Tom Ritchey eram exímios construtores de quadros, o que permitiu levar o desenvolvimento das Mountain Bikes para outro estágio. Agora, além da simples seleção de componentes, essa turma fabricava as suas próprias bicicletas.
O livro fala também sobre vários outros personagens importantes. Charlie Kelly era o principal escritor da turma, que espalhou o evangelho das Mountain Bikes para o mundo. Mike Sinyard, com a sua empresa Specialized, trouxe as Mountain Bikes para o mercado de massa. Wende Cragg, além de uma ótima ciclista, foi a fotógrafa que manteve essa história viva. John Finley Scott, um professor de sociologia, já havia fabricado suas clunkers com marchas em 1953, mas seu grande papel foi como financiador de Gary Fisher. Também há a história de Russ Mahon, que também já havia construído uma clunker com marchas antes de Gary Fisher, mas que não levou a atividade em frente. E mais um monte de gente…
O livro é muito bem construído, como uma tese acadêmica. Começa com a lista de personagens, comentando a biografia de 22 pessoas e como participaram dos eventos. Depois fala sobre o que veio antes de Marin County, com a história das clunkers e de alguns dos pioneiros da região de São Francisco. A parte principal é essa que contei aí em cima, com o desenvolvimento artesanal das máquinas até chegarem ao mercado. Berto divide esse desenvolvimento em três eras: “O Estágio das Clunkers” (1970-76), “As Mountain Bikes Artesanais” (1976-80), e “Mountain Bikes Produzidas em Massa” (1981 até hoje). Por falar em produção em massa, o crescimento desse mercado é impressionante: 300 bicicletas produzidas em 1980, 2.000 em 1981, 5.000 em 1982, 50.000 em 1983, 500.000 em 1984 e 5.000.000 em 1985. Difícil encontrar uma outra indústria com crescimento tão grande.
O lado acadêmico de Berto permeia todo o livro. Por exemplo, o livro fala sobre várias bicicletas anteriores que já tinham as características de off-road com marchas. O problema é que essas bicicletas não tiveram influencia na grande revolução das Mountain Bikes a partir de 1980. Berto, com muito cuidado, fala de tudo o que aconteceu, mas tenta separar os fatos que realmente tiveram influencia no nosso presente.
Outro exemplo de rigor acadêmico é que há todo um cuidado para definir o que é uma “invenção”. Por exemplo, o pneumático foi patenteado em 1845 por R.W. Thompson. Mas foi só em 1888, com os esforços de John B. Dunlop, que os pneus começaram a ser usados nas bicicletas. Portanto, embora a ideia tenha sido de Thompson, ele não teve grande participação no desenvolvimento do produto. No cinema existe uma grande romantização das pessoas que têm grandes ideias, como se fosse o único estágio de uma invenção. Tudo bem, é importante, mas não se podem deixar de lado outros estágios, como o desenvolvimento, a produção, o financiamento e o marketing. Se você ficar escondendo as suas grandes ideias para não serem roubadas, você vai ficar escondido em um canto para todo o sempre – neurótico, psicótico, todo errado. Agora, se você libertar as suas ideias, encontrará pessoas que te ajudarão a levar a coisa para frente. Não pense em montar apenas uma empresa. Pense sim em criar toda uma indústria saudável, com um monte de empresas – inclusive a sua.
Depois de viajar para a Atenas para ver o florescimento da Filosofia, para Londres para conviver com os grandes cientistas e para Marin County para testemunhar aquele bando de malucos, eu então aposentaria a minha máquina de deslocamento espaço-temporal. Pois, na verdade, quero viver aqui mesmo no Brasil, no nosso tempo.
Isso porque, quando ando pelas ruas, vejo um monte de gente andando de clunkers para ir ao trabalho, as mais diversas bicicletas de carga levando produtos de um lado para outro, percebo que embora tenhamos poucas ciclovias todas estão sempre lotadas, assisto o pessoal sair com suas bicicletas no final de semana para rodar nas estradas ou nas trilhas, e convivo diariamente no trânsito com os motoboys, que carregam a economia do país sobre as suas motos. Isso sem contar os jovens que saem às ruas para lutarem por melhores condições para os bicicleteiros, os acadêmicos que estudam a história da tecnologia, os fuçadores que montam bicicletas cada vez melhores, os blogs que incentivam o ciclismo e diminuem o preconceito contra os motoqueiros, e o desenvolvimento de novas tecnologias. Acima de tudo, vejo que as crianças nunca perderam a paixão pelas bicicletas, o que sempre dá a esperança para o futuro.
Por isso tudo, acredito que vivemos um momento de grande efervescência tecnológica, social e cultural. Daqui a pouco vem a revolução das duas rodas, com veículos seguros, saudáveis, limpos e inteligentes. Vai ser divertido.
Claro que o governo bem que podia fazer a parte dele, com mais vias para bicicletas e mais investimento em desenvolvimento tecnológico. Mas no final serão os cidadãos que vão fazer essa grande mudança, com ideias para novas ciclovias, competições esportivas locais, pequenos empreendimentos, fábricas inovadoras, luta política e produção cultural – até chegarem na fabricação das bicicletas e motos do futuro. Vai ser muito legal viver nesse tempo que vem chegando.
Quando Gary Fisher respondeu a Frank Berto, corrigindo o texto inicial em alguns fatos imprecisos e em certas opiniões infundadas, Fischer insistiu que o ponto principal de toda essa história, o ponto que realmente deveria influenciar as novas gerações, não era esta ou aquela tecnologia. O ponto central era que tudo tinha sido muito divertido. Legal, vamos fazer a nossa revolução das duas rodas divertida também.