Desafiando os Limites


© Coleção Equilíbrio em Duas Rodas (2021)
Livro: Motoqueiros Famosos

DESAFIANDO OS LIMITES
Fábio Magnani
[publicado originalmente em setembro de 2011]

Na prática da engenharia não há muito lugar para o método da tentativa e erro. É muito caro, ineficiente e perigoso. Seria a mais completa tolice fazer uma motocicleta desse jeito: lixa esse came, vê se dá certo, agora funde esse eixo para fazer um pistão, vê se funciona, então entorta ali a carenagem, vê o que acontece. Um ignorante que usasse esse método teria que usar a vida toda para fabricar uma única moto, abdicaria da família, trabalharia 16 horas por dia, anos a fio, arriscaria a vida nos testes e teria que ser um gênio natural para as coisas mecânicas. Esse cara teria que sofrer de uma obsessão clínica, quase precisando de internamento. Mas, ao fazer essa única moto, esse tolo ignorante obsessivo genial serviria para nos lembrar que a engenharia não é feita só de cálculos. É feita também de paixão.

Esse tolo viveu aqui na Terra, embora muitos dissessem que era de outro lugar. Foi Burt Munro, um caipira da Nova Zelândia que passou de 1929 a 1962 – 33 anos – melhorando a sua Munro Special até que batesse o recorde mundial de velocidade.

Burt Munro

Burt Munro nasceu na Nova Zelândia em 1899. Naquela época, o país havia começado um forte comércio de exportação de produtos derivados da carne e do leite para a Inglaterra e Estados Unidos. Foi uma época de prosperidade para os que viviam da terra. Embora Munro tenha trabalhado na fazenda da sua família até os 25 anos, ele sempre odiou aquela vida. Ele se sentia preso, sem poder participar do mundo moderno, que era tomado cada vez mais pelos trens, carros, aviões e motos.

O seu pai não gostava de máquinas, nem ao menos dos tratores que teriam ajudado na fazenda. Mas não pôde impedir que Munro comprasse uma moto com seu próprio dinheiro quando atingiu a maturidade. Naquela época, as motos eram o veículo de escolha para quem não tinha dinheiro para comprar um carro. Mais ou menos o que acontece hoje em dia aqui no Brasil. Mas para Munro as motos não eram para transporte, eram para velocidade.

Em 1920, Munro comprou a sua Indian Scout 600cc, que o acompanharia por mais de 50 anos. Era uma moto forte e resistente, com motor V-twin, três marchas e transmissão final por corrente. Teve que vender a moto em 1925, quando casou e foi morar na Austrália. Por lá, participou com certo sucesso em corridas de “speedway” (corrida em circuito oval), onde aprendeu a técnica de “power slide”, no qual a moto faz a curva de lado, patinando o pneu traseiro. Com a quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929, Munro voltou para a Nova Zelândia, onde, por uma sorte do destino, conseguiu comprar de novo a sua Indian Scout por uma pechincha. A máquina estava em uma vila costeira, toda coberta de mato, ao ar livre, encostada em uma cerca.

Naquele ponto Munro começou a transformar completamente a moto, sozinho em sua garagem, para alcançar velocidades sempre maiores. Quase tudo era refeito: pistões, cilindros, cames, virabrequim, quadro e carenagem. Foram tantas modificações que ele chamava a sua Indian Scout de Munro Special.

Na Nova Zelândia as pistas de “speedway” eram de grama, que têm uma tração melhor do que o piso das pistas que ele tinha corrido na Austrália. Por isso o “power slide” não funcionava muito bem. O melhor era frear antes da curva e acelerar na saída, como todo mundo fazia. Mas Munro, sempre um devoto da velocidade, não mudava a sua técnica. Ele era uma grande atração, pois passava voando pelos outros pilotos na entrada das curvas, depois jogava grama para tudo quanto é lado. Era perigoso, mas divertido. Tanto ele gostava de velocidade que as alterações na moto sempre foram para andar mais rápido. Ele simplesmente ignorava qualquer tipo de alteração nos freios. Afinal, ele queria correr mais, não menos.

Com o tempo a sua moto foi deixando de ser competitiva em “hill climb” (competição de subida de ladeiras) e “speedway”. Passou então a prepará-la especialmente para velocidade. Em 1940 se tornou o homem mais rápido da Nova Zelândia, atingindo 194 km/h.

Em 1951, já separado da esposa e dos quatro filhos, Munro mudou-se para a cidade. Vivia em um pequeno galpão, que servia como casa, oficina, laboratório e sala de estar para os amigos, que vinham conversar sobre motos e tomar um chá. Munro vivia de forma muito humilde. Todo o pouco dinheiro de sua pensão era usado na moto. Ele era um homem muito amável e conversador. Adorava contar os seus causos de corridas, acidentes e projetos. Com o seu jeito, fazia amigos em qualquer lugar. E onde há amigos não é preciso dinheiro.

Mesmo com tanto trabalho, chegou um tempo em que não conseguia mais fazer a moto aumentar a velocidade. Para as tentativas de recorde é preciso de uma grande reta plana, por isso normalmente eram usadas as praias. Só que as praias não eram longas o suficiente e o vento lateral provocava muita instabilidade. Era preciso ir para um outro lugar. Do outro lado do mundo.

Bonneville

Bonneville é uma grande área de sal no estado de Utah, EUA. A superfície é bem plana e, apesar de ter algumas lufadas de vento, não são tão comuns como nas praias. Os pneus fazem trilhas no sal, mas as chuvas anuais restauram a pista. Embora a primeira competição de velocidade tenha ocorrido em 1914, foi só depois da Segunda Guerra Mundial que começaram a usar a pista natural de forma mais contínua na tentativa de quebrar recordes de velocidade – tanto de moto quanto de carro. Foi lá que tiraram a foto de moto mais famosa do mundo, em 1948, quando Rollie Free superou os 240 km/h com a sua Vincent HRD 1000. Nessa foto, Rollie aparece completamente deitado sobre a moto, vestido só de sunga e sapatilha para diminuir o arrasto aerodinâmico.

A partir de 1956, todos os recordes de velocidade em motos foram batidos em Bonneville. Para se ter uma idéia, em 1956 o recorde era de 312 km/h. Em 2010, uma moto com propulsão pela roda atingiu os 606 km/h. Uma das disputas mais emocionantes foi em 2006, quando três motos intercalaram os recordes. Mas há outras classes interessantes por lá também, como a “McGyver”, na qual em 2004 conseguiram atingir a velocidade de 93 km/h em uma moto com motor de apenas 2.5cc.

Munro fez várias visitas a Bonneville, primeiro para aprender e depois para competir. Entre 1962 e 1967 ele bateu três recordes para motos carenadas modificadas, o primeiro abaixo das 883cc e depois na classe até 1000cc. No último recorde atingiu 295 km/h. Nada mal para uma moto de 1920 transformada em casa.

Burt Munro morreu de causas naturais em 1978. Mas para todos os seus amigos da Nova Zelândia, e para todos os outros que fez em Bonneville durante as tomadas de velocidade, ele só voltou para o seu planeta natal. Mesmo para os que só o conheceram pelos livros, filmes e lendas, Munro é o exemplo de genialidade mecânica e paixão pelas motos.

Livros e Filme

Toda essa história, e muito mais, como quando ele fabricou o seu próprio avião em casa, está no livro “One Good Run – The Legend of Burt Munro”, de Tim Hanna. Segundo o autor, o livro é um pouco dramatizado para ficar mais interessante, mas os fatos importantes são reais.

Outro livro bem legal é “Bonneville – World’s Fastest Motorcycles”, de Horst Rösler. É cheio de fotografias das motos no sal. Fala sobre a história da pista, dos principais embates, das várias categorias, dos personagens e dos perigos da pista. Quase não fala de Munro, mas desenvolve todo o cenário em que ele viveu seus dias de glória.

Há também o filme “Desafiando os Limites” (“The World’s Fastest Indian”), que volta e meia passa na televisão. O diretor do filme, Ronald Donaldson, já tinha filmado um documentário de Munro em 1971, quando ele ainda estava vivo. Na época foi importante para Munro, porque as filmagens permitiram que ele fizesse a última viagem a Bonneville, a décima.

No filme, Munro é representado por Anthony Hopkins. A história começa com ele já velho, alguns dias antes da sua viagem para Bonneville em 1962. Termina com a tentativa de bater o recorde. O filme não conta que ele tinha praticamente abandonado a família para perseguir o seu sonho e que já era um piloto bem conhecido na Nova Zelândia. Além disso, o filme junta histórias das várias viagens de Munro para Bonneville como se tivessem ocorrido todas em 62. Mas nenhuma dessas inexatidões importa, pois o filme consegue transmitir muito bem a essência de Munro: sua obstinação, seu capricho, seu jeito amável, sua coragem e sua paixão.

Em geral as pessoas ficam discutindo se determinado filme é melhor ou pior do que o livro que conta a mesma história. Neste caso os dois são tão diferentes que não têm nem como comparar. O livro de Tim Hanna traz toda a história de Munro. Já o filme conta só alguns dias de sua vida. Mas, mesmo nas diferenças, os dois são semelhantes na emoção e nos ensinamentos. Ao assistir o filme, ou ao ler o livro, posso quase apostar que qualquer um fica mais fascinado ainda com o trabalho das pessoas que fazem as nossas motos. Tanto faz se são engenheiros, técnicos, pilotos de teste ou inventores.

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